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Dor na boca

No dia em que acordei às 12h17, tinha a boca dorida de ter vomitado. Os lábios pareciam mais secos de terem sido esticados e as gengivas ardiam das crostas duras e do sódio da broa de chouriço.       Lavei a cara com sabão e escovei os dentes com uma escova nova que me magoou o fundo da língua.      Saí do quarto zonzo e com calor. As noites já estão frias, mas as manhãs veranis. No corredor grande, piso um papel A4 que a minha mulher me tinha deixado escondido debaixo do tapete de vaca.      Fui ao super mercado, volto às 12h30. Bjo. E um coração.      Desço para a cozinha e faço um chá antioxidante. Penduro-me na barra presa entre a porta e faço 5 séries de 20 elevações mal feitas, só para circular o sangue das bochechas inchadas para o resto do corpo.      Tenho que parar de beber até às tantas, embora de outra forma não consiga ver as repetições dos discursos que tentam justificar os ataques às flotilhas...

Sem almofada

A manhã acorda-me completamente desfigurado ao espelho. Depois de dias saudável, esta madrugada vejo-me de olhos almofadados e bochechas inflamadas; marcas de uma noite mal conseguida.     Quando chego à minha avo, ainda o dia vai demasiado cedo para ter alguém acordado. Arrumo as malas para amanhã e arrasto-me para a cama velha com um colchão demasiado moderno. Os ortopedistas agradecem, mas custa-me adormecer nesta superfície dura. Se é para ter colchões assim, durmo no chão. Sai mais barato e faço earthing.     Mas não é esta firmeza que não me adormece. É uma mistura entre a ausência de almofada e as frinchas abertas da primeira claridade que se quer fazer ver.     Levanto-me e penso deitar-me com a minha avó no quarto ao lado, mas aproximo-me apenas para ter a certeza que respira.     Ajeito-me no sofá da sala e sonho que viajo de camioneta com o meu pai. A viagem, que tinha ar de ser longa, termina no parque onde há uns meses nos juntámos pa...

Cão vadio

“Proibido exceto a residentes.”     Estou, portanto, no sítio certo.     Nasci e cresci em Braga. A casa que tenho com os meus pais há 21 anos — a idade que tem o meu irmão — faz parte do concelho de Amares, mas na verdade fica mais perto do centro de Vila Verde.     Esta placa de “proibido”, que termina no rio Homem, não me pertence diretamente, mas também não me deixa sentir um estranho.     Lisboa recebeu-me permanentemente há quase 3 anos, e deixou-me desamparado logo no dia 1, quando me comunicaram, na véspera, que aquilo que me lá me levara afinal não iria acontecer.      E então, sozinho e de malas desfeitas num quarto na Penha de França, deixei-me ficar à experiência por três meses, que se estenderam a um contrato de renda de dois anos. Daí, mudei-me para um novo quarto no Lumiar, e se perdi as baratas escondidas nos rodapés, também perdi os Sapadores e a azáfama da Almirante Reis, da Graça e da Praça Paiva Couceiro.   ...

O mundo é grande demais para não o fazer mais vezes

À minha esquerda, o golfo de Elefsina, e à direita, uma senhora rapa as batatas fritas do fundo do pacote. São 8h20 da manhã, estão perto de 40 graus e sigo pela rota que termina em Nafpaktos. Em Portugal são 6h e eu estou aqui de direta.      O voo foi à meia noite, mas não consegui adormecer mesmo com as luzes ambiente da Aegens. O casal brasileiro ao meu lado era muito querido e entrelaçaram as mãos com força quando o avião deslocou, mas o gajo até acordado ressonava. Além disso estava demasiado calor para passar pelas brasas e o meu entusiasmo e nervosismo pelas alturas manteve-me colado à janela durante as quase 5h.      A primeira coisa em que pensei quando meti o pé em Atenas foi que o mundo é demasiado pequeno para não fazer isto mais vezes. Fiz muitas roadtrips quando era mais novo, mas nada se compara ao poder mágico de um aeroporto. No fundo entras num elevador mágico e quando sais é tudo diferente; não há tempo para adaptação. Tiras o pé do chão...

Ressaca

Voltar a acordar em ressaca sentimental, cujo sintoma é sentimento em duplo do sentimento antes tido em demasia. A causa é a mesma. E geralmente ocorre em manhãs mais paradas e geralmente acaba quando a manhã se vai movimentando. O sol também ajuda. Escovar os dentes, lavar a cara. Tudo isso ajuda. Ontem ensinei a um austríaco a palavra saudade. Hoje gostaria que ele me ensinasse a esquece-la. Caminhar também ajuda. Mas há dias em que não quero que ajude. Faz só esquecer, por momentos. 

Que nos valha a retórica

Cada vez mais vou notando, em pessoas que não me são tão distantes assim, ideias simpatizantes às do CH, com argumentos que relativizam as suas propostas mais extremas. O Chega não é, por definição, um partido de extrema direita. É um partido liberal, de direita conservadora que (não oficialmente) mostra uma tendência para posições marcadamente discriminatórias. Embora não se insira da definição histórica da extrema-direita, muitos dos seus apoiantes estão ligados a grupos violentos e movimentos xenófobos que promovem ódio contra comunidades estrangeiras, LGBTQIA+ e minorias. E o partido tem que assumir responsabilidade pelos movimentos que inspira, mesmo que não os reivindique diretamente. Diogo Pacheco de Amorim, uma das principais figuras do Chega, esteve ligado ao MDLP, uma organização armada que se opôs à descolonização. A Rita Matias, voz ativa contra o aborto e defensora dos valores tradicionais, é filha do ex-líder do PPV, uma força cristã-conservadora que se opunha ativamente ...

O apagão

Segunda feira, 28 de abril de 2025.  Apagão total em vários países da Europa. i. Só me apercebi porque o trânsito ficou, de repente, caótico. Nos cruzamentos ninguém respeitava ninguém, e decidiam por eles próprios que direções tomar. Os carros estavam todos atabalhuados em para-arrancas e hesitações, e só aí me apercebi que os semáforos não funcionavam.     Depois os passeios começaram a encher. As pessoas saíam das casas e vinham para a rua ver o que se passava. Estavam todas ao telemóvel, ora em chamadas telefónicas, ora a prepararem-se para.     Caminhei imune a tudo, interpretando como exceção, até que me apercebi que não o era.     As pessoas caminhavam mais apressadas, com urgência, e comecei a ouvir as primeiras sirenes ao longe.     Foi aí que tirei os fones para ouvir, como se um sentido extra fosse resolver uma situação global. Peguei no telemóvel e liguei os dados móveis, que estavam mais lentos e demoraram mais a carregar.  ...