pão com manteiga
A Dona Rita, de roupão rosa apertado até cima, raspa a manteiga nos dois lados da torrada. O pequeno almoço já vai a meio, e é o pescoço que, com estaleca, vai à mão que segura o último pãozinho.
Está surpreendentemente bem composta para quem acaba de acordar. Uma maquilhagem minimalista, muito natural, que me deixa a perguntar se já terá acordado assim.
"Tenho 88 anos", diz-me, e fazemos as contas: "de 1937".
Ontem deitou-se quase tão tarde como nós, mas a genica no corpo e a rapidez de raciocínio são de quem teve uma noite de repasto. E de quem tem bem menos uma década do que aquela que carrega.
Vai-se queixando de umas dores nas costas e uns problemas na vista, mas que são normais e não afetam por aí além. Tanto quanto sei, as idas à natação são diárias.
A Rita Jr, ao lado, toma o mesmo pequeno almoço de há anos: um pão aberto ao meio, torrado, recheado com manteiga e um ovo que, dependendo das manhãs, se navega entre o estrelado e a omelete.
Vai coçando o lábio infeior, não por nervosismo, mas hábito inconsciente, e beberica da chávena branca, que fervilha.
Cumprimento-as com um bom dia, também ainda de pijama, e digo-lhes que dormi quentinho. Perguntam-me se as roupas me serviram e respondo que sim, esticando a cinta das calças, onde caberiam mais seis corpos meus.
A Rita deita a língua de fora por não me apetecer comer já, mas ainda há pouco lavei os dentes. Encho a mesma chávena da noite anterior com café e acrescento também um pouco do leite que encontro ao lado, entreaberto.
Tomo sempre um café longo, preto, puro, mas hoje, nesta casa familiar, apetece-me o sabor de uma memória nova.
Ontem cheguei tarde, já depois do jantar, e estivémos a partilhar cigarros felizes até às tantas. Adormeceu-me o cheiro a tabaco na ponta dos dedos e a euforia, ainda hoje presente, das conversas.
Gosto que, com a Rita, possa ser quase todas as versões de mim.
A Dona Lina, a doméstica, tira de um saco as rendinhas azuis que anda a fazer para o neto de 5 anos, e depois revela que há uns dias passara muito mal dos intestinos por ter bebido sumo de laranja em jejum. Acrescenta que 20 minutos depois já estava a "deitar a carga toda ao mar".
Está sol, mas com muitos resquícios da tempestade que passou. A manhã está gelada, estamos no inverno de Gaia, e a porta da rua está acolhedoramente aberta para o jardim exterior.
Volto a servir-me do café e começamos a falar das eleições que se aproximam. A Rita Sr. diz que nunca votou por influência do marido, e a Jr. diz que nunca na sua vida tinha exercido tanto o direito ao voto como ultimamente. Respondo-lhe que, ainda assim, nunca esse voto pareceu tão inútil, e ela concorda.
Na mesa estão uns bolinhos de Francelos, não muito doces. Embrulho um num guardanapinho para a viagem, e logo me dizem que leve mais. Guardo-os na lancheira que deixei no frigorífico cheio da casa germinada, e volto a cruzar as pernas à frente da cadeira.
A Rita levanta-se para varrer o chão e identifico a minha deixa para ajudar a terminar o serão que podia ter ficado assim para sempre.
Há momentos que bem podiam ser infinitos e o mundo seria tão banal e perfeito.
Levanto a mesa e deixo a loiça na pia. O gato laranja, novo demais para ser tão gordo, trepa e começa a brincar com o fio da lanterna. Ainda falámos sobre aspiradores, livros e canalizações, e depois subo para me ir trocar.
Faço a cama, deixo a roupa dobrada aos pés, e volto a escovar os dentes com a pasta dos Duques. Visto a mesma roupa do dia anterior e aperto o casaco de modo a que a gola me cubra o pescoço.
Com o guarda chuva empunhado numa mão e a mala na outra, vou embora deste espaço que, em tão poucas horas, me parece também ser um pouco meu.

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