Sem almofada

A manhã acorda-me completamente desfigurado ao espelho. Depois de dias saudável, esta madrugada vejo-me de olhos almofadados e bochechas inflamadas; marcas de uma noite mal conseguida.
    Quando chego à minha avo, ainda o dia vai demasiado cedo para ter alguém acordado. Arrumo as malas para amanhã e arrasto-me para a cama velha com um colchão demasiado moderno. Os ortopedistas agradecem, mas custa-me adormecer nesta superfície dura. Se é para ter colchões assim, durmo no chão. Sai mais barato e faço earthing.
    Mas não é esta firmeza que não me adormece. É uma mistura entre a ausência de almofada e as frinchas abertas da primeira claridade que se quer fazer ver.
    Levanto-me e penso deitar-me com a minha avó no quarto ao lado, mas aproximo-me apenas para ter a certeza que respira.
    Ajeito-me no sofá da sala e sonho que viajo de camioneta com o meu pai. A viagem, que tinha ar de ser longa, termina no parque onde há uns meses nos juntámos para celebrar o ultimo São João antes do meu irmão emigrar.
    Depois de descarregarmos as coisas e escondermos uns capacetes de motas atrás do bancos das carrinhas, estávamos numa sala de ensaios de dança com a minha turma do colégio. O meu pai estava encostado à parede e éramos chamados, um a um, ao centro, para copiar uns passos.
    Antes de conseguir perceber o que nos levou a todos ali, estava de repente sentado no sofá onde agora dormia, com a única rapariga da grupeta que não conhecia.
    Na mesa de jantar atrás, a minha familia acaba de almoçar e o meu irmão surge, do corredor, vindo do quarto com o colchão ainda velho. Veste uma camisa que nunca teve e usa o cabelo recém cortado. Ao longe parece-me ouvir alguém vomitar, mas não ligo. Ele interrompe o meu serão com a anónima e abraço-o com força, sem saber que é de saudades. Ele é recebido por todos com o entusiasmo de uma pós refeição, e a minha avó entra da cozinha e pergunta se queremos ovos estrelados.
    Estou sem sangue nos braços e olho para a sala escura enquanto espero que o frio me percorra as veias. Estou mais recuperado, e lembro que é a segunda vez que sonho com o meu irmão hoje. São 10h32 e as notificações no telemóvel contrastam com o silencio da casa.
    A minha avó está meia arrebatada no quarto. Depois de anos a acordar bem, hoje vomitou e mexe-se devagar.
   Já é tarde, mas que bom que dormi.

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