Mensagens

O concerto do madrugador

Imagem
O camião do lixo da 1 já passou e agora, às 2h, ainda acordado por doses de cafeína tardias, o que me chega é o clarinete distanciado por duas janelas abertas: a minha e a do músico, que vou vendo chegar de carro em manhãs tardias, sempre de estojo às costas.      Inspirado pela noite quente que ressaca os arraias dos santos, ele vai ensaiado as notas e dá tempo suficiente para respirar entre elas. Podia perfeitamente transformar o serão num concerto para madrugadores, mas o nítido ensaio não chega a terminar nenhuma das melodias, deixando assim a refeição, saborosa, interrompida, como um castigo de quem prefere experimentar, em vez disso, pedaços, excertos, estrofes desagrupadas que se vão ritmando com a comichão que a noite quente me provoca na pele arranhada por unhas roídas.     Quando chegam as 3, continuo sem sono e amaldiçoo o cobertor quente e a preguiça que tenho em me levantar para o trocar. O músico deve ter-se vitaminado do mesmo que eu - suponho que a água olímpica venha d

Não negociável

Faz-me realmente diferença ter passado a ir a Braga mais vezes. Na distância e na ausência, na vida em independência, tenho notado que me é fundamental recarregar-me de e recarregar os meus. Isto porque tenho a noção do quão sortudo sou por ter nascido com uma família que, embora não tenha escolhido, seria exatamente a mesma caso o tivesse feito.      E desta última vez não senti o sufoco que senti das outras, em que a instabilidade económica me deixava a incerteza de não saber quando voltar. Desta vez não senti o desespero de não terminar o abraço, nem o medo de desaproveitar o tempo e o deixar expirar. Desta vez pude respirar. Pude andar de bicicleta, ir ao cinema, mergulhar no rio, estar com um amigo, fazer uma sessão fotográfica, rever fotos antigas, rever vídeos antigos, estar com uma amiga, caminhar pelo centro e respira-lo com outros olhos. Visitei o meu irmão no local de trabalho, fui buscá-lo à escola, fui barrado no cinema, escrevi, li, votei, fiz dois castings, recebi um qua

Os 60 do meu pai

Hoje, de regresso a Lisboa, enquanto me encolho na camioneta e evito a todo o custo roçar o meu cotovelo ao do homem ao meu lado, dou por mim pensar no dia 8 de janeiro.     Oito de janeiro será sempre a data do aniversário do meu pai. E por muito bizarro que seja o facto de conhecer uma mão de pessoas que façam anos nesse dia, nenhuma delas lhe tira a supremacia.  Nascido em Portimão, veio ao mundo com um nome prometido pelo meu avô a Deus caso sobrevivesse à Guerra Colonial. É Francisco Xavier Martins Amorim. Sou, tal como ele, de nome composto, e cresci ouvindo usarem vocativos diferentes. Mas, contrariamente a mim, ele pouco se importava: sabendo-o Xavier, nunca o ouvi corrigir quem o chamasse Francisco.       Aborrecido com a viagem longa, faço contas rápidas e relembro-me que o meu pai fez 60 anos e que não os celebrei com ele. E de repente sinto-me mal. Sinto-me culpado. E só agora, seis meses depois, me vem o luto pela minha ausência no seu aniversário. E deixo-me culpabiliza

Defunto-fantasy

Olho-me no espelho do armário. O vidro fosco encara-me aos pés da cama e reflete a imundice de quem me tornei. Os pés secos e o pelo no peito não parecem pertencer ao meu nu, mas todos os dias me relembram deste velho eu; a cara afiada e o cabelo escalado de quem não é tocado há muito tempo. Não me reconheço. Lembro-me das vidas passadas, mas esqueço-me da infância. Doem-me os joelhos, doem-me as costas retas. Já nem sei andar. O tempo lá fora está intolerável. A ventoinha encravada limita-se a espalhar a melancia podre e a lista telefónica ao lado só lê nomes de pessoas que já não existem. Estou a uma chamada do céu, mas para sempre preso aqui. Demoro a ler nos ponteiros as horas e quando as decifro percebo que o relógio parou. Levanto-me para beber, mas não há água; afinal talvez tenha que sair para encher o depósito, mas não tenho vontade de me embrulhar nos panos suados de ontem. Estico a língua e lambo o metal molhado do lavatório, mas o meu corpo rejeita o líquido e volto a vomit

Enumerações incompletas

Filipe antes de tudo.  Escritor que por vezes dá erros. Ator sem problema de tirar o C. Disciplinado com défice de atenção. Menino da mamã e excelente cozinheiro. Ativista contra a lei de Murphy. De mente sã e corpo são, mas com vícios. E de estados de espírito que oscilam. Amante de calor e dependente do sol. Epicurista de cafunés. Confiante em dias e impostor agradável noutros. Dorme de janela aberta e procura desconforto. Gosta de fazer surpresas, mas que não lhas façam a ele. Por vezes tem calor nos pés. Uma pessoa de pessoas. É fascinado por motas que nunca sequer conduziu. Partilha o mesmo sonho com o maior medo: voar. É Panteísta. Gosta de servir. Aponta citações em cadernos, mas prefere tirar notas no telemóvel. Tem múltiplas caligrafias e demora a ver as horas nos ponteiros do relógio. Adora piadas, mas não sabe dar gargalhadas. Emociona-se com filmes nos cinemas. É nostálgico e romântico, de coração divido e gosta de toda a música desde que não tenha azeite. Adora assados e d

Não escrevia aqui desde janeiro

Sei-me, na falta de melhor atributo, existencialista. Tenho recebido tanto, mas ainda procuro o caminho que me rejeita. Ou talvez não. Porque também gosto deste balanço. Gosto de poder ser Homem antes de profissão. E sinto-me acompanhado, ainda, mas conversamos menos. Já não registo o diário da minha vida em páginas matinais e talvez sinta esse vácuo. Isto porque experiencio 7 dias num só e não o quero fazer sem propósito. Nesta dicotomia coloco tudo em questão. Desconfio dos edifícios à minha volta e das paisagens em que à boleia me colocam. Por vezes estranho esta forma de viver. Sinto que vou de transporte, que não conduzo. Mas por outro lado estou feliz. E talvez o problema seja esse. Ter percebido que tenho tantos outros interesses com os quais posso trair a minha arte. Estou em temperança. Deixei de correr tanto. E talvez a estranheza venha disso. Deste novo sedentarismo. Estou mais pacífico, menos ansioso. Vivi tanto tempo em velocidade que esta experimentação menos irrequieta m

Incognito

Sou a incógnita do dia e da noite Sou o galo com canto de coruja Sou o chorar da lua e o tsunami no mar Sou o extrovertido que não se quer mostrar Sou homem, por vezes mulher Sou adulto de criança frágil Sou criativo escondido e performance de palco Sou maxilar trincado e sou pó de talco Sou desintoxicação que se rende ao ópio Sou estratega que vai obedecer Sou o nu que se quer bem vestido Sou carvalho ancião a florescer Espírito velho de corpo em brasas Mente idosa em alma jovial Aviador com vergonha das asas Sou libertador ditatorial.