O apagão

Segunda feira, 28 de abril de 2025. 
Apagão total em vários países da Europa.

i.
Só me apercebi porque o trânsito ficou, de repente, caótico. Nos cruzamentos ninguém respeitava ninguém, e decidiam por eles próprios que direções tomar. Os carros estavam todos atabalhuados em para-arrancas e hesitações, e só aí me apercebi que os semáforos não funcionavam.
    Depois os passeios começaram a encher. As pessoas saíam das casas e vinham para a rua ver o que se passava. Estavam todas ao telemóvel, ora em chamadas telefónicas, ora a prepararem-se para.
    Caminhei imune a tudo, interpretando como exceção, até que me apercebi que não o era.
    As pessoas caminhavam mais apressadas, com urgência, e comecei a ouvir as primeiras sirenes ao longe.
    Foi aí que tirei os fones para ouvir, como se um sentido extra fosse resolver uma situação global. Peguei no telemóvel e liguei os dados móveis, que estavam mais lentos e demoraram mais a carregar. 
    “Apagão afeta Portugal de norte a sul”. E depois: “Apagão afeta vários países – o mesmo está a acontecer em Espanha e noutras zonas da Europa”. E finalmente: “O corte de energia começou por volta das 11h30, atingindo também França, Alemanha e Itália”. As notícias e atualizações chegavam, ao minuto, até do Brasil.
    Atravesso a passadeira e fico parado no meio da rua, na berma de um entroncamento. Tenho o casaco atado à cintura e estou sem t-shirt debaixo de um sol completamente tórrido. Tiro os óculos de sol e fico mais cego, mas sinto que na claridade natural posso experienciar isto mais primitivamente. 
    De pé, em silêncio, vou girando o corpo para ter toda uma perspetiva do cenário.
    As portas dos super mercados encheram-se e lá dentro faz-se trânsito. Os restaurantes estão escuros e nas esplanadas continuam a trazer bifes com batatas fritas. Não se ouve o relato da bola, e continuam pessoas de pé, debaixo dos toldos, à espera para entrar.
    As sirenes vão aumentado ao longe. Vejo mais carrinhas dos bombeiros que o habitual e os carros da polícia seguem-nas a grande velocidade. Ouço buzinas e bebés chorar, mas provavelmente é casualidade. Noto mais urgência no ar e nos olhares cruzados e começo a receber mensagens de “Vou desligar o telemóvel para poupar a bateria. Até breve.”
    Chego a casa e penso em todas as pessoas que estão agora presas nos elevadores. Penso em varandas elétricas que não se abrem e nas casas à sombra que não sabem deste fim de abril veranesco. Penso que temos sorte por pelo menos estar bom tempo; mas que a comida descongela a cada minuto.
    Penso que pela altura que escrevo este texto, contava que isto já se tivesse resolvido, e o facto de afetar tantos países unisse esforços em conjunto – mas por agora ainda nada. 
    E no auge do meu privilégio, de quem se desempregou a uma segunda feira, mas ainda tem uma varanda onde poisar ao sol, sossega-me saber o impacto ecológico que estas horas estão a ter, e que podem muito bem estar a reverter danos de meses. E só me chateia realmente, na inocência de quem acredita que o apagão não sobreviverá o fim de almoço, não ter forma de consegui reaquecer o meu café.

ii.
Depois do almoço levantei-me do puff e voltei à rua.
    O dia bonito, o chilrear dos pássaros e o cheirinho a primavera estava indiferente à agitação humana.
    Em cada semáforo, um agente da PSP com cones, e várias tropes de motas de luzes ligadas. Cada vez era mais comum ver autocarros de “Recolha” e “Fora de Serviço”, e de repente parece-me ver mais táxis, já que os ubers estão inoperáveis.
     Há definitivamente mais pessoas a caminhar nas ruas e mais carros estacionados em segunda fila. Os condutores em pé, encostados à porta do lado de fora, têm os braços cruzados e conversam uns com os outros. Ouvem-se os gritos dos putos no recreios e as bolas serem chutadas contra as grades dos parques de lazer.
    Arrisquei-me a atravessar a via rápida e fui ter com um polícia que, apesar da minha transgressão, pareceu feliz que lhe interrompessem o isolamento. Estávamos ao lado do aeroporto, e perguntei-lhe como é que é possível os aviões continuarem a descolar.
    “Sim, os aeroportos não pararam.”
    “Como?”
    “Provavelmente têm geradores”
    “E o metro?”
    “O metro está parado. Até nem sei como fizeram, porque sei que houve metros que apagaram a meio dos túneis e as pessoas tiveram que sair.”
    Não sei se tem que ver com pagamentos em atraso, se por causalidade, mas perdi completamente o acesso à internet. Além disso, as chamadas telefónicas e as mensagens deixaram de funcionar. Estou completamente incontactável e, pior que isso, desinformado. 
    Dou por mim mais atento às conversas entre os pares nas ruas, e ouço dizerem: “Dizem que pode durar até três dias. Não quer dizer que sejam três dias, até pode ser que se resolva hoje; mas falaram de até três dias”. 
    Ao passar à porta de um supermercado, deparo-me com as portas abertas e uma centena de carrinhos das compras alinhados de forma a impedir a entrada. Dois clientes conversam cá fora com as funcionárias, que esperam que isto volte o mais rápido possível porque não têm forma de fechar as portas. 
     “Vai ver, eles vêm aí; isto por agora foi só um teste”, comenta um velhote, que escolho acreditar que é só extremista.
    Passo por uma escola e por um pai que caminha com urgência: “Sim, saí agora para ir buscá-lo, e já não saio daqui sem ele”, diz ao telemóvel para a mãe.
    Decido regressar a casa, porque percebo que pouco mais há a saber disto. Contava chegar com a surpresa de que tudo tinha voltado ao normal, mas os semáforos apagados estragam-me as vontades.
    Um mini mercado à porta vende pão e água e há uma fila de pessoas a sair com os sacos cheios. Os vizinhos estão todos cá fora, e escolho ignorar as coscuvilhices e suposições. 
    Entro no prédio pela garagem subterrânea e faço às escuras o caminho até às escadas de emergência. Pelo meio apercebo-me de uns ponteiros verdes flutuantes e reparo que está alguém dentro de um carro. 
    Aproximo-me; está a ouvir as noticias pela rádio – quem diria – a única fonte de informação que vai-se mantendo imune a isto.
    “O primeiro ministro está agora a dirigir-se ao país; diz que estão a tentar resolver isto hoje”, conta-me.
    Entro em casa e só me apercebo da minha inquietação quando me vejo ao espelho. Tenho a boca fechada, mas o queixo caído, em desamparo. Apresso-me a colocar os dentes de volta à posição correta e pergunto-me se o meu humor de manhã era humor mesmo ou defesa. É que há muito que o café frio deixou de ser um problema.

iii.
Antes que perca totalmente a bateria do telemóvel, escrevo num post-it alguns números telefónicos importantes. Escolho não me deixar levar pelas vozes tremelicadas na minha cabeça, mas prefiro prevenir-me.
    Vindo algures de lá de fora ouço: “Abrantes já está!”.
    Vou até à janela, debruço-me e berro para que repita. É a vizinha que vive logo em baixo: “Abrantes já está. Há zonas de Espanha que também já têm. Pelos vistos em Santarém também voltou”.
    Uma outra surge à janela e só lhe vejo os braços: “Foram buscar energia a uma central hidráulica; não sei é essa chega até aqui”.
    Deito-me a ler e mantenho o telemóvel ligado à corrente para que o ecrã se ilumine assim que a eletricidade volte. 
    Mas com o passar das horas começa a escurecer. E eu aborreço-me. É engraçado que até a vontade de comer perdi; não a fome, mas a vontade de comer. Além disso, começo a achar que devia começar a procurar velas.
    Volto a sair. Uma última dose de luz antes do verdadeiro apagão. As lojas estão todas trancadas com grades e cadeados, e só as de conveniência e cafés a moedas se mantêm abertos.
    Um brasileiro simpático vem ter comigo:
    “Olha aí meu irmão, desculpa incomodar, mas estou desde de manhã tentando contactar minha esposa que está no Brasil e…”
    Ergo a mão e calo-o. E fito-o a olhar para mim, de dedo erguido, à espera.
    “Estás a ouvir isto?”, pergunto-lhe.
    “O quê?”
    “Isto.”
    Ele fica à escuta. 
    “É um alarme”, digo, “será que já voltou?”.
    Tenho até receio de levantar faltas esperanças, mas pego no telemóvel para verificar. 20% e continuo sem rede.
    Depois peço-lhe desculpa e explico-lhe que também não consigo falar com ninguém desde de manhã. Em breve nem as horas vou conseguir saber.

Epílogo.
A eletricidade só voltou quando já não havia dia que restasse. Cheguei a ver as velas acesas nas varandas dos vizinhos, e foi fácil perceber o regresso à normalidade quando todos vêm às varandas e começa a bater palmas. Foi bonito. Abracei a minha senhoria e fiquei genuinamente feliz. 
    Como que magicamente, perdi a compulsão de escrever. Soube entretanto que o meu pai arranjara forma de ligar o gerador da caravana a casa e que tivera um dia completamente inabalado, alimentado a luz solar até às 20h. A criatividade precisa disto – um estimulo, uma razão; surge sempre como consequência de algo e assume a forma de textos ou geradores.

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