O mundo é grande demais para não o fazer mais vezes
À minha esquerda, o golfo de Elefsina, e à direita, uma senhora rapa as batatas fritas do fundo do pacote. São 8h20 da manhã, estão perto de 40 graus e sigo pela rota que termina em Nafpaktos. Em Portugal são 6h e eu estou aqui de direta.
O voo foi à meia noite, mas não consegui adormecer mesmo com as luzes ambiente da Aegens. O casal brasileiro ao meu lado era muito querido e entrelaçaram as mãos com força quando o avião deslocou, mas o gajo até acordado ressonava. Além disso estava demasiado calor para passar pelas brasas e o meu entusiasmo e nervosismo pelas alturas manteve-me colado à janela durante as quase 5h.
A primeira coisa em que pensei quando meti o pé em Atenas foi que o mundo é demasiado pequeno para não fazer isto mais vezes. Fiz muitas roadtrips quando era mais novo, mas nada se compara ao poder mágico de um aeroporto. No fundo entras num elevador mágico e quando sais é tudo diferente; não há tempo para adaptação. Tiras o pé do chão, e assim que o voltas a colocar, o mundo é outro.
E aconteceu tudo de forma tão não planeada, que ainda não me tinha mentalizado que terminaria aqui a semana dos meus 27. Há dois dias foi o meu aniversário, ontem estreei o meu monólogo na capital, e hoje estou aqui. Esta calendarização fechou-me os olhos, segurou-me na parte de trás do pescoço e eu limitei-me a deixar-me ir.
Eram 5h da manhã, ainda o sol não tinha nascido, e já eu suava. O bafo no ar veio acompanhado de um aroma balsâmico a jasmim, e à minha volta eram só Montes Olimpo.
Não sei de onde vinha a música, mas acompanhava-me para todo o lado, como se parte não diegética do filme desta aventura. A música exótica, com ares do médio oriente, começou do lado de fora do aeroporto e continuou no primeiro autocarro para Kifisos; pelo meio também (h)ouve espaço para os Abba.
E é claro que, sendo eu, a viagem não começou sem agitação.
Pela minha já assumida aversão, decidi viajar sem dinheiro físico, e nenhum máquina parecia querer ler o meu cartão virtual. Tinham-me reservado um bilhete de autocarro, e por essa impossibilidade não o conseguia levantar.
Na bilheteira da empresa dos autocarros, sugeriram-me tirar dúvidas no balcão de informações do aeroporto. No balcão de informações do aeroporto, disseram-me que não eram uma empresa de autocarros.
- Miss, the machine doesn’t work.
- What do you mean, it doesn't work?
- It's just, it doesn't read my virtual card.
- Well, I guess it doesn’t read your virtual card, then.
- Ahm, yes… is there any other way?
- Well, do you have a physical card?
- I do not…
- Well, do you have money?
- No…
- What are you even doing, then?!
E tinha razão. Eu estava a contar com a facilidade de um cartão virtual que na verdade nunca tinha usado antes e nem me lembrei sequer de um plano B.
Então comecei a pedinchar. E pedinchar dinheiro é realmente estranho, principalmente quando nada indica que não o tens. Ofereci-me para transferir a umas miúdas americanas, mas também não tinham cash, e fui ignorado por duas ou três pessoas que mostravam estar com pressa. Uma senhora ainda me sorriu, mas deu-me as costas mal usei a palavra “money”.
Acabei por contar com a bondade de uma estranha, a Iris, que não pareceu contente que lhe tivesse interrompido a tentativa de acender do cigarro. Grega, com algumas tatuagens e repas a meio da testa, nem quis retorno nenhum. Trocou umas palavras rápidas com a senhora da receção e passou-me o bilhete para a mão assim que o autocarro tinha acabado de arrancar. Bati à porta, apressado, e o condutor – estrábico e cego de um olho – abriu-me as portas.
De dentro, lancei um último olhar de agradecimento desesperado à grega, que não me pareceu minimamente interessada, e se debatia para que o isqueiro fizesse faísca.
Ktel Kifisos, a primeira paragem, estava longe de ser o que imaginava. Caótica, vibrante e romanticamente desorganizada, tinha uma movimentação parecia saída da Índia, onde nunca estive.
Já na segunda camioneta, procurei a tomada entre os assentos, mas, no lugar onde se deveria colocar a fichar, encontrei um abridor de caricas embutido. Quando contei isso ao diretor do festival, ele riu-se e disse “Welcome to Greece, Filipe”.
O céu é estranhamente bonito aqui, de um perpétuo lilás. E o ar do mar à esquerda desfoca os montes infinitos, cada vez mais verdes. A paisagem é ligeiramente industrial, mas não deixa de ser bonita. Os bidões enormes, os navios de carga e as fábricas estão um bocado destoadas, mas não deixa de ser um vislumbre com carga - o mundo velho a misturar-se com o novo.
Passo por sucatas de carros totalmente queimados pelo sol, e certos relances lembram-me as ruas compridas do deserto americano, onde nunca estive. A música, que nos últimos minutos parecia um remix de Quim Barreiros com David Guetta, torna-se agora mais medieval, e reparo num pequeno santuário vermelhinho que o motorista leva pendurado à janela.
Eu bem quero dormir, mas não posso. Não consigo, não me iria permitir perder a vista, e por isso nem tento. Penso em Poseidon e no quanto estudei os helénicos e tudo me parece tão mágico e deslumbrante. Estes dias dei por mim fascinado até com os rótulos dos alimentos. Tudo é mágico. Um alfabeto com mais de 3000 anos e ainda em uso – uma carga em cada um dos caracteres.
A forma como falam parece-me, por várias vezes, espanhola. Isto ao ponto de quase me parecer estar prestes a compreender; mas do nada é como se virasse turco (na verdade eu nunca ouvi turco), e passa-me tudo ao lado.
Com esta viagem perdi completamente a ilusão que ainda poderia vir a aprender muitas linguas. Percebi que há fluências que não me consigo simplesmente ver motivado para tentar alcançar.
As feições dos gregos também são bem características. Tenho alguma incapacidade de identificar nacionalidades só pelo aspeto – não saberia descrever, por exemplo, os portugueses, até porque cresci com uma mãe portuense que sempre confundiram por inglesa. Mas denoto que os gregos têm algo de especifico, que não sei explicar muito bem. Também vi ruivos e peles pálidas, mas existe uma ginga sempre mediterrânica.
Mas confesso que não para de me surpreender a anarquia destes descampados. Parece tudo deixado ao abandono, mas completamente habitado. Um caos que se tornou o modo comum de organização.
Já me afastam quase 3h da Ática, e parece-me tudo deixado sem manutenção. Os sinais e as disposições das coisas estão todas tortas, velhas, empilhadas, e o próprio trânsito revela desordem. Já não é a primeira vez que vejo 3 gajos numa scooter e ainda há pouco passou por mim um velho de cabelos brancos ao vento numa chopper.
Mesmo no centro de Atenas, dias depois, passei por condutores sem capacete e perguntei se na Grécia não era obrigatório. Disseram que sim, mas que ninguém quer saber – nem mesmo a policia.
Pelo meio da viagem, passei por um Lidl à beira da estrada e perguntei-me se também teriam pães de noz.
Para quebrar um pouco o nova monotonia, meti uma chiclete na boca. E depois outra. E depois outra. Não tive tempo para o pequeno almoço, mas não quero gastar já as latas de atum que trouxe para alguma emergência. Além disso não tenho garfo e o meu organismo ainda acha que são 7h da manhã.
Ligo o telemóvel, que coloquei a preto e branco para poupar bateria, e vejo que ainda me esperam 2h de autocarro e mais 40 minutos até ao destino. Isto a brincar ultrapassa as 9h de viagem num só dia. E eu que odeio longas distâncias de carro – passei muitos anos a atravessar a Europa de caravana com os meus pais, mas assim que tirei a carta, deixei de aguentar muito tempo a ser conduzido.
Mas hoje, aqui, estou super entusiasmado. A música vai tocando e a paisagem sempre a mudar.
“Are you in the right bus?”, escreve-me a rapariga que me reservou os bilhetes, mas não tenho forma se saber.
Acordo assim que o meu queixo descai e minha boca se abre. Olho para o relógio e vejo que dormi 30 minutos.
E finalmente chego, sem saber que tinha chegado. Estou exausto, cheio de sede, com um olho fechado e o outro semi aberto, e questiono toda a minha vinda. A bomba de gasolina parece ter saído do Arizona (também nunca lá estive), mas finalmente um sinal de que estou no sítio certo.
- Felipé?
A George é, creio, a village president. Não sei, não cheguei a perceber muito bem o que faz, mas percebi que foi fundamental para estes dias. Se tivesse que adivinhar, diria que é uma das investidoras. Mas o mais importante é que era uma senhora muito simpática.
- Are you the guy from Portugal?
- Ri. Yes, I am the guy from Portugal
- Oh wow, oh my God, you came!
Quando vou para lhe dar um beijinho, estica-me a mão como cumprimento. E foi assim com toda a gente, não são de beijinhos. Será que isto dos beijos é uma cena tuga? Pus-me a pensar se aqui não terão de mim a mesma ideia que os americanos têm dos franceses: que são todos uns beijoqueiros.
A George ofereceu-me logo uma garrafa de água e perguntou-me se queria um café.
- Yes, please!
- Espresso?
Eu sei lá se é espresso, só quero um café.
Ela gesticula o tamanho com os dedos.
- I want a large one.
- Americano?
- Yes!
- Cold?
- Oh no, hot!
O café chegou bem composto. Longo, forte, torrado-queimado, e ao ponto de quase me ferir o lábio superior.
Durante a viagem de carro tive que me começar a esforçar para me manter acordado. O café quentinho e algum peso no estômago deixou-me tão confortável que os olhos começaram a fechar-se sozinhos. Mas a vista era demasiado bonita e a conversa novidade o suficiente para me não me deixar adormecer. Era tudo tão diferente e finalmente tinha encontrado alguém a quem pedir respostas.
Percebi que o estado da Grécia não é tão diferente de Portugal. A cultura é precária, os preços cada vez mais inflacionados, e a extrema direita tomou recentemente o poder.
- You are so young! How old are you?
- I'm 26... – corrijo – 27.
- Wow, that is really young.
Não sei muito bem o que achar sempre que me dizem isto. Por um lado porque não concordo, por outro lado porque seria suposto ser mais velho? Além de que tenho bem a noção que, consoante como acordo nesse dia, tanto posso ter 20 como 30.
Deixou-me em Tahio, à porta de uma villa enorme, e a dona veio-me abrir a porta.
A casa era maravilhosa e bem podia ter saído da escola Charles Xavier para sobre-dotados. Subi os primeiros degraus de pedra, ladeados de relva regada, e entrei pela porta de correr da sala. Em frente, a piscina ocupava o centro do espaço exterior, rodeada por camas de descanso ao sol. O hall era enorme, havia um jardim com barras para treinar e a máquina de mini-basket. A cozinha era uma espécie de ponto de encontro e não chegamos sequer a usar os sofás do corredor. Janelas havia-as em todo o lado; era uma casa despida, e não havia grande privacidade.
Sobrou-me o último quarto, pequeno e bonito, com uma cama de maciça que ia até ao teto. Estava abafado, por isso arrumei as minhas coisas no armário, troquei-me e fui-me apresentar.
E de repente tenho, não sei porquê, um orgulho enorme em dizer que sou português. Eu sou o Filipe, o português. E faço questão de dizer que sou de Braga, do norte, mas que vim de Lisboa, que todos conhecem.
- Praga?
- No, B-R-A-G-A. With a B. As in Boi. Braga.
Notei foi uma dificuldade imensa em decorar os nomes deles, mas deram-me alternativas mais latinas, que acabei por usar. Eu cá se fosse eles nunca deixaria um ibéricozinho com mania mudar o meu nome homérico. Os meus roommates eram o Fivos, a Areté, a Leoni, o Thanatos e a Maria. Juntavam-se muitas vezes a Sofia e o Vasilis e depois, na equipa, entre dezenas de membros, estavam o Damianos, o George (havia 3 Georges), a Danai, o Panagiotis, Mixalis e Sotirias. E todos os outros filmmakers.
O almoço foi soutzoukakia com salada e arroz e passámos a tarde à conversa no exterior da taverna, com uma vista lindíssima sobre as Dorida Mountains.
Com 30 minutos de sono, acabei por me debruçar na mesa a meio da conversa e adormeci durante 10 minutos.
Além do Alexander, que chegou ontem de Paris, sou o único estrangeiro, e por vezes tenho que os ir relembrando disso quando começam a falar grego. Eles pedem desculpa, 3 noto que têm que se esforçar para se navegaram no inglês. Bem me tentaram ensinar algumas palavras, e eu também, mas acho que nos acabámos por esquecer.
Por volta das 19h fomos para um descampado, onde seria a festa e as exibições. Havia espaço para barracas de comida, um parque de estacionamento e a pequena Igreja São Jorge. Logo ao lado erguia-se ancient theatre alto, muito naturalista, esculpido ali mesmo, com degraus longos e bicudos.
Um tipo grande, forte, com pinta de lutador ucraniano, veio-me cumprimentar todo contente.
- Oh, you are Filipe from Portugal!
Hoje é o aniversario dele e está há 3 dias aqui a fazer voluntariado. Desejei-lhe os parabéns e sugeriram que tentasse adivinhar a idade dele.
- Ahm... I'm not good with this – digo sempre, principalmente com mulheres, para me proteger – maybe 28?
Começaram-se todos a rir. Tem 17 anos e decidiu vir ajudar apesar de estar a estudar para ser engenheiro eletricista.
Passado umas horas tive que me isolar; estava exausto. Fui-me sentar num banquinho de pedra para contemplar a vista, que graças a deus ainda não esqueci. Os montes estendem-se até à linha do horizonte, em vários camadas de formas e tons, até que finalmente se unem ao longe.
Pensei pedir a alguém da produção que me levasse a casa para dormir um pouco, mas lá lutei contra a vontade do meu corpo de sair dali. Estava exausto, e os 40 minutos de sono intermitente estavam a ter o seu efeito.
Mas depois o Konstantinos ofereceu-me uma tortilla de queijo e presunto e fiquei que nem novo. E voltei a olhar com deslumbre. Tudo era diferente, tudo era especial. Os caracteres místicos voltam a impressionar-me e relembro que tudo aqui é lendário, até o tamanho dos narizes deles.
Ficamos à conversa até o sol se por e assim que escureceu começaram os discursos, os agradecimentos, e a exibição dos filmes.
Eu cá questiono-me como é que um local tão isolado conseguiu juntar – o que depois me disseram ser – 600 pessoas. Supostamente vieram de todo o lado e alguns fizeram 3h desde Atenas para vir apoiar a comunidade local.
A masterclass do dia seguinte foi numa fonte chamada Magani, que fazia lembrar um presépio – fátni. Descalcei-me, porque com aquele calor nem de meias me aguentava, e disseram-me que podia beber diretamente da fonte.
Debrucei-me para uma água pesada, fresca, e fui lá várias vezes, já sem sede, só pelo prazer da pureza líquida.
Para o almoço pedi as mesmas almôndegas do dia anterior, mas já não havia. Contentei-me com um frango de churrasco e reparei que eles devoravam a pele com toda a gana do mundo.
O Vasilis sentou-se perto de mim e pude conhece-lo melhor. É um puto ainda, tem 23 anos, e muita vontade de fazer filmes. Mas agora vai ter que parar um ano para cumprir o serviço militar. Vai ser escalado para uma das ilhas e receber 6 euros por mês. O Thanos safou-se disso, arranjou forma de provar que era maluco da cabeça, e o Fivos está a tentar fazer o mesmo.
À tarde foi a cerimónia de entrega de prémios e uma série de entrevistas. Dei descanso à minha tradutora, Athina, e fiquei o resto do tempo sem perceber nada.
Mas eis que de repente alguém diz "Félipé Murime" e toda a gente começa a bater palmas enquanto olha para mim. Não percebo o que se está a passar e sou empurrado, ainda descalço, para o centro do palco. Um dos júris entrega-me um diploma – Best Screenplay, e faço um discurso. É irónico, porque para o meu filme não segui de todo o guião.
De volta à esplanada da Taverna, estava eu numa mesa com todos, e aparece o Damianos, a Dania, o Panos e o George com um bolo de aniversário. Todo o restaurante me canta os parabéns em inglês e eu admito, enquanto coro, que estou a corar.
Eles (so)rriem, e eu peço que me voltem a cantar, desta vez em grego. No final, sopro os isqueiros.
- We were going to sing you happy birthday yesterday but you went to bed earlier!
Agradeci-lhes, genuinamente surpreso e grato. Ser cantado "chrónia polá" (muitos anos) no topo do monte da Potidania estimulou-me para o resto do dia.
Dividi o bolo por todos, que o comeram diretamente às colheradas, e depois a conferência de imprensa durou cerca de 45 minutos por vencedor.
Quando terminámos já passavam das 22h e eu não podia ouvir mais grego. Regressámos à taverna para umas espetadas e pude conversar bastante com o Alexander, parisiense, que demorara 7 anos a criar o seu filme de animação de 14 minutos.
- I think I was tired because I was hungry – disse ele a meio do porco estufado com mel.
- In Portugal we say "o teu mal é sono", but sometimes "o teu mal é fome".
As quatro espetadas, o queijo feta e a salada aguentaram-me até às 3h da manhã na festa. A malta estava a dizer que tinha gostado mais da música no dia anterior, mas eu não me podia queixar – era hip hop, menos dançável mas que me flui melhor.
Não quis acreditar foi quando o despertador tocou passadas quatro horas. Lavei a cara, escovei os dentes e fui treinar para as barras, apesar de continuar dorido das sessões anteriores. Passámos a manhã à mesa da sala, e eu saboreava um café com mel, leite de avelã e manteiga de sésamo.
Encanta-me o cuidado que têm com o ritual matinal: o Thanatos anda sempre com alguns grãos de café e um mini-kit de viagem para os moer na hora.
Antes de partir, ainda mergulhei na piscina e tirámos uma foto de grupo. Depois segui para Atenas com o Petros e o Odysseas, os DJs."
Cheguei à Acrópole por volta das 15h. Tinha sido notificado de um incêndio grave perto do centro e consegui vê-lo ao longe, combatido por cinco hidroplanadores e dois helicópteros.
O calor continuava arrebatador – ao ponto de as chicletes na mochila derreterem – e os 10kg de mochila às costas faziam-se sentir. A este bafo chamam-lhe eles "dragon breath", algo como “anasa tou drakou" - o bafo do dragão.
Fui a uma cafetaria e pedi um café quentinho, cheio e bem chulado, por ser turista – mas que me soube pela vida. E assim fiquei, a ver o Parthenon ao longe.
Depois passaram por mim três miúdas lisboetas. Pensei meter-me com elas em português, mas agradou-me o anonimato. Deu-me um imenso gozo esta invisibilidade momentânea, foi o mais perto que estive de mosca. Senti o mesmo quando, durante estes dias, fazia chamadas ao telemóvel à frente de todos.
Talvez, com estas raparigas, fosse apenas coisa de voyeur — querer saber, de forma genuína, o que sentiam, sem a resposta ensaiada que ouviria se perguntasse. Ou talvez a coragem para intervir me tivesse chegado tarde demais e já corresse o risco de parecer esquisito
Por isso fui acabar sozinho num banco à frente de um quiosque, a comer duas latas de atum, não por fome, mas por vontade de me livrar de 240g às costas.
Voltei a caminhar durante umas boas horas, por vezes tirando os óculos para não ver a realidade filtrada, por vezes colocando-os para proteger a pele do sol direto.
E Já na zona do metro, interrompi a funcionaria, muito simpática, que conversava com um cliente.
- Sorry - I said; só queria fazer uma pergunta rápida.
- Oh, no worries - respondeu o senhor - we’re friends.
- Just because you're friends, it doesn't mean I am not interrupting - sorri-lhes.
Perguntei-lhes o que queria saber e depois:
- Are you from the US?
- No, no, Portugal - disse com todo orgulho.
- Oh, I love Porto!
E não foi a primeira vez que mo disseram. No festival, um gajo chegou mesmo a dizer-me que preferia o Porto a Lisboa, mas sem me justificar o porquê. Braga é que ninguém me sabia dizer onde era.
A senhora do metro escreveu à mão, num papel, o itinerário até ao aeroporto e eu segui-o.
Na segunda carruagem deparei-me com uma grega lindíssima, de lábios mais que carnudos, e um nariz mais que grande, mas a nossa interação não passou desta referência que lhe escrevi nas notas do telemóvel.
Já na última paragem, desligaram as luzes da carruagem, para todos percebermos que devíamos sair.
Menos de uma hora depois estava no avião, satisfeito por mais uma vez ter calhado à janela.
Ao meu lado sentou-se uma família portuguesa numerosa, que se estendiam nos cinco lugares até à outra janela. Colado a mim estava o avô, nos seus 80, e depois o filho, a chegar aos 50. Quando o capitão anunciou que a viagem ia durar 4h30, disse:
- Foda-se, quase 5 horas? À vinda para cá foram só 2h!
Custou-me a acreditar, mas ele elucidou-me:
- Sabes que à vinda para cá, a Terra estava a rodar na nossa direção, por isso a distância é mais curta. Mas para lá a Terra está a rodar no sentido contrário, por isso demoramos mais a chegar. Percebes? É que a Terra só roda num sentido".
Não sei o que é pior: isto ou os terraplanistas. Mas as lições ainda não tinham acabado:
De vez em quando o avião fazia umas descidas bruscas, talvez para ajustar a rota, talvez para se desviar de um lençol de ar, e eis que ele se vira e explica:
- Sabes que eles de vez em quando têm que descer para acompanhar a curvatura da Terra, porque se continuam em frente vão parar ao espaço.
Eles eram anedóticos. Principalmente quando me encostei de olhos fechados para dormir e me abanou o braço para me acordar e continuar a falar comigo.
Mas a meio tivemos um stress: No altifalante do avião surge uma voz feminina, de leste, que demonstrava um nervosismo nítido que nos contagiou.
O discurso ainda foi longo, incompreensível, e o meu receio foi crescendo. Tentei perceber que zona do mapa poderíamos estar a sobrevoar, mas lá em baixo só se via as luzes de alguns navios e o negrume do oceano. Também não consegui perceber que horas eram, porque não sabia em qual horário o telemóvel estava, e por isso não dava para precisar há quanto tempo estávamos a voar.
As pessoas começaram a despertar e a olhar à volta à procura de respostas e de alguma hospedeira que nos desse um sorriso de esperança. Mas não havia ninguém.
E depois. Silencio.
E eis que surge a hospedeira, ao longe, sorridente. O capitão informa que acabáramos de ter um pedido de casamento a bordo e eu respiro de alívio, sabendo que isto nunca teria acontecido se algum destes nabos, eu incluído, soubesse falar russo.
Começaram todos a bater palmas e vinte minutos depois estavam todos apagados, a dormir.
Eu continuei com o nariz colado à janela a espreitar as luzes lá em baixo e as estrelas no céu.
Há alguns dias concluí que preciso de mudar algo na minha vida. Sinto-me preso a uma rotina de obrigações, apenas a existir. Quero que o meu anjo da guarda se foque em fazer-me viver, e não que eu me coloque em situações em que ele tem que se ocupar de me fazer sobreviver. A vida é demasiado curta para me responsabilizar tanto e sei que me preciso de me livrar de algumas amarras. E agora estou aqui, no meio do céu.
Quando o avião aterrou, a família de portugueses bateu palmas; e eu teria feito o mesmo, não estivesse já sem forças – foram 27h de viagem em quatro dias, com um sono que totaliza as 12h.
No dia a seguir liga-me o Damianos, o diretor do festival, a perguntar-me se correu tudo bem.
- Man, I am so happy for you – diz – there he is, this motherfucker Félipé comes all the way from Portugal to Potidania to win an award and then leaves. You know, I had no saying because I wasn't in the jury, but I'm really happy you won, my friend".
E prometeu-me que nos voltávamos a ver em novembro.
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