Rogar pragas

Não faz muito tempo que me deixava encantar com a grupeta de formigas que de vez em quando apreciava treparem o canto da divisão. Até me deixei afeiçoar. Comunicávamo-nos numa empatia sem abecedário e fiz questão de tomá-las como parte da mobília; acreditei, piamente, que tinham tanto direito quanto eu.
    São seres sobreviventes, entreajudam-se, fazem por si. E não são grandes o suficiente para me causar aflição, nem pequenas o suficiente para que me cause paranoia não as ver.
    Mas se ainda no outro dia dialogava com quatro formiguitas que transportavam uma migalhona e uma outra que apareceu de surpresa no teclado, hoje repudio tudo o que, aqui em casa, tenha mais que duas pernas.
    Isto por culpa das baratas que, por serem tão horrendas, me fizeram esquecer o panteísmo e me incitam a esmagar tudo que seja pequeno e se mova.
    É que Lisboa tem disto; por muito bonita que seja, três coisas são garantidas: as subidas íngremes, os passadiços escorregadios e as pragas de baratas.
    E é que eu nunca tinha visto uma barata antes de me mudar para aqui. Nem no monte. Nem na terrinha. Fazia-lhes, por isso, à distância, uma vénia de quem reconhece a sua mitologia e resiliência e talvez em parte até admirasse a sua audacidade.
    Mas desde que vim encontrá-las na capital, na cidade do Cristo-Rei e dos Museus e das Artes, tudo mudou. É que porra, que nojo; isto são mesmo mini extraterrestres saídos das páginas de cartoons.
    E o que mais me incomoda nem é saber que existem por perto - embora isso seja, já por si, uma valente razão de repúdio; mas o que me incomoda é que apareçam sem aviso, em locais íntimos e fora de horas.
    No outro dia saiu uma, sorrateira, de repente, de debaixo da cama; uma outra apareceu na pia da cozinha, saída de trás do detergente da loiça; e uma terceira - ou talvez fosse a mesma reencarnada três vezes - apareceu de madrugada, no corredor, quando me levantei para ir à casa de banho.
    E o pior é que, por cima disto tudo, reza a lenda que elas voam. Uma altura entrou-me uma, toda despistada, pelo quarto a dentro, que nem um Kamikaze bêbado. E quando vou para a matar, arranja forma de desaparecer para dentro do rodapé. Até me esperneio de imaginar às dezenas delas, escondidas dentro das paredes do meu quarto, de olhos brilhantes a piscar, a olhar-me enquanto durmo.
    E depois há os famosos mitos urbanos: “Cuidado onde matas a barata! Olha que ela deixa lá os ovos e esses não morrem, depois nascem todos”.
    De maneiras que estes bichos deram-me a conhecer um absolutista aniquilador de que até tenho medo. Viro um completo assassino exterminador. E suspeito que exista uma qualquer explicação cientifica que justifique a ligação neurológica entre os meus pés e a minha boca. Porque de cada vez que uso o pé direito para as pisar, solto um “foda-se”, e sempre que uso o esquerdo, um “caralho”.
    O prédio onde vivo não é novo e, se alguma vez o chão desabar, terá sido pelas pisadas que lhe dou, que estremecem até as paredes. “Prédio no centro de Lisboa desaba após de tentativa de assassinato a uma barata. Inquilinos faleceram no local e a vitima encontra-se em estado estável”.

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