Defunto-fantasy

Olho-me no espelho do armário. O vidro fosco encara-me aos pés da cama e reflete a imundice de quem me tornei. Os pés secos e o pelo no peito não parecem pertencer ao meu nu, mas todos os dias me relembram deste velho eu; a cara afiada e o cabelo escalado de quem não é tocado há muito tempo. Não me reconheço. Lembro-me das vidas passadas, mas esqueço-me da infância. Doem-me os joelhos, doem-me as costas retas. Já nem sei andar. O tempo lá fora está intolerável. A ventoinha encravada limita-se a espalhar a melancia podre e a lista telefónica ao lado só lê nomes de pessoas que já não existem. Estou a uma chamada do céu, mas para sempre preso aqui. Demoro a ler nos ponteiros as horas e quando as decifro percebo que o relógio parou. Levanto-me para beber, mas não há água; afinal talvez tenha que sair para encher o depósito, mas não tenho vontade de me embrulhar nos panos suados de ontem. Estico a língua e lambo o metal molhado do lavatório, mas o meu corpo rejeita o líquido e volto a vomitar. É a sétima vez em quatro horas. A imunidade ainda combate a bactéria que levou os outros, mas amanhã já começa tudo outra vez. Tiro os pelos, tomo banho, coloco roupa lavada, canto Dylan e reinvento-me.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Saudades Precoces

Remelas e selfies em hospitais

Daddy issues.