Daddy issues.

Na mão direita levo as alças dos tacões penduradas nas pontas dos dedos e, na esquerda, a bolsa preta de pele brilhante. Deixei as meias esburacadas algures pelo caminho e os meus pés descalços percorrem, em ferida, o alcatrão quente. Quando o chão escuro se torna agreste por demasiado tempo equilibro-me, em linha, na faixa branca que delimita a estrada. 
    Os faróis dos carros rasgam-me a córnea sempre que passam e eu escondo a cara em direção às unhas dos pés pintadas. Tenho receio que me reconheçam, mas, mais que tudo, tenho vergonha. 
    Passados alguns quilómetros percebo que este estado de alerta me faz mais mal que bem. Reduzo o compasso e respiro fundo para me acalmar. Calma, já passaste por isto, tu sabes lidar contigo mesma. Reparo que me doem os músculos das coxas e endireito as costas, até aqui curvadas em posição de defesa. Ou de ataque. Estou a andar para onde? Com que propósito? A casa também é minha. 
    E foi aí que as dores começaram. Que tudo que se acumulara deu asas de existir. Quando o búfalo se voltou a esconder na barriga, todo o corpo se ressentiu. O jantar, tomado há horas, veio-me à boca e tive que me agachar para conter a dor. O mindinho da mão direita tremia-se-me e começo a chorar compulsivamente. É a primeira vez que o faço desde que aprendi a escrever.
    Levanto-me e tento fazer o caminho inverso de volta para o apartamento. A lua é criança, ainda. Um quarto crescente demasiado amarelo. Gosto dela assim, mas suspeito que não seja recíproco. Largo os tacões, que de pouco me servem, e caminho com a braço apoiado no ventre.
    A estrada está deserta e há poucos postes de iluminação. Olho para uma placa da estrada e tento situar-me. Estou longe, muito longe. A noite está amena, mas a minha pele está pegajosa e sinto um rasto de suor deslizar pela parte de trás da perna. Ardem-me as maçãs do rosto e olho-as, inchadas, no espelho do telemóvel.
    Quando, antes de sair, me tranquei na casa de banho, bloqueei-o nas redes sociais. Não sei porque o fiz. Vivemos debaixo do mesmo teto, mas não quero que me conheça mais via facebook. Talvez lá seja eu própria. Aqui ele vai fazendo o reino dele; lá fora todos me veem igualmente. 
    Esperei que viesse bater na porta, mas não o fez. Não houve qualquer barulho. Nem batidas, nem passos, nem insultos crispantes. O silêncio foi mais assustador. A escuta, a espera. Mas o que para mim é mais estranho é o silêncio dos vizinhos. Não somos propriamente amigos, mas conhecemo-nos, tratamo-nos por tu. Partilhamos receitas nas reuniões de condomínio e eles entregam-nos limões e abóboras. Mas os berros ignoram. Os gritos, a loiça partida. Preferia que não o fizessem. Provaria que não sou a louca que ele me faz parecer. 
    Ontem, passadas duas semanas ausente, disse-me que lhe fazia falta. Hoje, de punho em riste, ameaçou enfiar-me o nariz dentro da cara e arruinar a minha carreira. Era para lhe responder que há manequins com nariz torto, que dá personalidade. Mas preferi não o fazer. Se respondo, é porque respondo. Se calo, é porque calo. E, calada, a consequência é a mesma.
    Vejo um SUV aproximar-se e reduzir a velocidade. Os médios passam para os mínimos e ele para uns metros à minha frente. Desliga-se o motor e ouço-o abrir a porta. Imediatamente tiro o telemóvel da carteira. Está sem rede, mas ainda assim encosto-o ao ouvido. 
    Um homem de meia idade, baixo, careca, sai e olha para mim. “Não pareces nada bem, rapariga”. “Sim, não, eu sei, mas não se preocupe”. “Queres ajuda?”. Não me sinto capaz de correr, mas talvez consiga fazer-lhe frente. Pensando isto, vomito a salada para os pés. Ele aproxima-se, mas eu estico o braço para que não o faça. Obedece. Também o compreendo. É fácil o homem bem intencionado ser tomado por ameaçador. “Parou por minha causa?”, pergunto. “Não, não”, responde, inclinando-se em direção a uma casa. 
    Recomponho-me e tento imaginar o que vê. Eu, sozinha, às tantas da noite, com a maquilhagem negra a escorrer debaixo das olheiras carregadas e a pele dos antebraços pisada. Mas o que ele não vê é o quão bem, apesar de tudo, isto me soube. E é esquisito perceber que afinal animais somos todos. Que esta dor, por muito que me afete, me afetou. Que me fez sentir alguma coisa. Que me acordou e justificou todos os traumas psicológicos por que fui passando.
    Ele atravessa a estrada e entra na casa. Eu respiro de alívio e volto a sentir uma dor que me leva ao chão. Aceito-a e deixo-me deitar à frente do carro, debaixo do holofote. O telemóvel está quente, ainda sem rede e a ficar sem bateria, mas ligo para o primeiro número que me aparece. A minha irmã. A chamada cai no voice mail, mas pouco importa. Fico a ouvir a voz programada e a olhar para o céu nublado.

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