Paparazzi

Deitei-me já os galos despertavam e acordei sonâmbulo poucas horas depois. Fui correr antes que a lucidez se lembrasse da preguiça e depois estendi-me debaixo do sol.
    Tenho-me privado de algumas horas de sono para receber a luz do dia pela manhã. Primeiro vem o cansaço e uma carga que o meu corpo jovem ainda não tem. A postura das costas é acumulada e as pernas arrastam-se com o peso de duas morsas. Mas depois logo o ritmo se ajusta e sabe bem. E quando, a meio do dia, vejo as horas, já risquei uma série de deveres da lista.
    A maior parte das minhas tarefas são, na verdade, autoimpostas. Mas dou-lhes a mesma obrigação que um filho tem para a mãe. Ou devia, pelo menos. Ou não. A vida exige uma resiliência espartana, diz numa peça do Tennessee Williams, e então a tento. Quando por vezes deixo algo por cumprir, cumpro na mesma. Arranjo sempre de o justificar.
    Hoje, por exemplo, fiquei de ler um guião. Mas estou cansado e não me imagino a passar os olhos pelo seu todo. Mas começo-o. Nem que me fique pela primeira página. Amanhã já está o processo em andamento e o custo não é tão grande.
    Hoje celebra-se o dia da mãe. Não sei se só em Portugal, se no mundo todo, mas a data é de todas. Principalmente da minha. A minha avó veio cá almoçar e a minha mãe fez peru estufado em cerveja, tomate e cebola. Já sugeri que déssemos um nome a este prato, mas de papo cheia não se criam ideias.
    Confesso que não ajudei em nada. Servi-lhes um café no final e fui levar a minha avó a casa perto do jantar. Agora que penso nisso, acho que nem fiz a cama. Mas agora que penso nisso, dormi no sofá. Depois arranjo forma de as compensar durante a semana.
    As conversas de mesa de nada serviram e em nada ao mundo ou a mim acrescentaram. Mas que bem fazem. E que tanto valem.
    Ontem vi uma fotografia do Sean Penn a agredir um paparazzi. Ou terá sido hoje? E agradou-me a forma como o fotógrafo pausou, a preto e branco, um movimento de anca destreinado. A expressão selada significou-me algo que não consigo agora explicar. 
    E porquê explicar tudo? Porquê esta necessidade compulsiva de tentar colocar pontos em todos os is? Há de haver is com dois pontos e outros que, sem nenhum, são só traços. E está tudo bem. Matam-se tantas obras quando se fala sobre elas. 
    Li hoje que a palavra escrita marcou o fim do nomadismo. Que esta sedentarização do pensamento foi o que intelectualizou o Homem. Mas logo de seguida li que os primeiros registos escritos foram de listas de deveres, tarefas e contas por pagar.
    Então, no final da última refeição, troquei o prato pelo teclado e dei à luz este texto. Uma mistura de nadas que não quis explicar e listas cumpridas.

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