Perdi os domingos
Perdi os domingos.
Perdi os domingos quando saí da casa dos pais. É que os domingos começavam debaixo de cobertores pesados em manhãs tardias. O café quente e cansado era preparado com a minúcia lenta de quem não conhece urgência e a cozinha cheirava a torradas com manteiga. Na televisão por norma passava a vida selvagem ou uma missa rotineira. A minha mãe não é a pessoa mais católica do mundo, mas não tinha coragem de mudar de canal quando estivesse a dar a eucaristia; podia dar em pecado.
A cama aparecia misteriosamente feita durante a tarde. Os lençóis perfeitamente alinhados e a almofada com um ar intocado. O pijama não se despia nunca e o cabelo ficava com o mesmo (des)penteado com que acordara.
Recordo os domingos com frio, mas com sol reconfortante. Por vezes ia à varanda só para poder dizer que saí e respirei ar puro, mas passava a maior parte do tempo dentro da casa grande.
Quando era mais novo, bem criança, autorizavam-me a que fizesse um intervalo nos estudos durante a manhã. A minha mãe preparava-me uma salada de fruta e lá ia eu sentar-me a ver as séries da altura. Lembro-me que trincava os gomos da tangerina, ou as pequenas fatias de pêra, de forma lenta e prolongada. As três meias peças de fruta degustavam-se demorosamente para prolongar o meu período de lazer.
O meu pai nem sempre estava em casa. Por vezes saía ainda antes de eu acordar para tratar de um qualquer assunto relacionado com um segundo trabalho. E quando chegava, chegava tarde, o que fazia com que o almoço fosse tardio e melhor apreciado.
Hoje em dia o almoço continua tardio, mas já não sabe a domingo. As camas já não se fazem sem explicação e a fruta não se descasca sozinha. O frigorífico não aparece gratuitamente cheio e já não me chamam para serões à mesa. Os jantares já não têm conversas despreocupadas, e eu já não me levanto para abanar as castanhas dentro da panela de sal. À noite já não me deito com as roupas a cheirar a forno e as mantas com que me cubro já não são as mesmas.
Por muito frio que sentisse, parecia quente. Agora o frio é só frio.
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