Ritmo de poesia
Desço as escadas do prédio para a rua inclinada e recebe-me um dia ameno e o cheiro a croissant quente. Protejo as orelhas e escondo o cabelo mal cortado debaixo do gorro. No bolso coloco uma mão teimosamente fria e com a outra equilibro o meu licor matinal.
Sabe-me bem o ar fresco na cara e lembro-me que devia ter colocado pomada no lábio que ameaça ficar em ferida. Contorno as ruas íngremes e sinto as nádegas sofridas destas subidas diárias. As nuvens limpas no céu viajam com pressa injustificada e cumprimento o senhor da mercearia que acaba de montar a banca.
Mas não é tão cedo assim. O mundo já acordou, mas sente-se no ar a temperança de quem não tem pressa. Não é o meu caso, embora o meu ritmo não acompanhe a minha urgência. Hoje serei irresponsável e farei por chegar atrasado. Talvez mais tarde me justifique e atribua a culpa aos transportes públicos.
Encontro o semáforo para piões na Almirante Reis vermelho e, como sempre, arranjo forma de o passar sem alterar o passo. Está tudo tão pacífico hoje. Que silêncio. Que é feito da pressa de ontem? Os próprios motores dos carros parecem não ter acordado completamente.
O meu corpo agora teima em acordar cedo, mas preciso de uma noite completa de descanso. Estou naquela fase em que me demoro a lembrar de nomes próprios que tinha memorizados e que assisto a algumas passagens como mero espectador distanciado.
Com um bom dia abençoa-me uma caligrafia na parede. Lê-se, em stample encarnado, "pura poesia". E é. Eu cá tinha saudades de escrever. Os meus fluxos de consciência esgotam-se quando me expresso de outras formas; são ciumentos e fogem a sete pés como se vítimas de traição.
Mas hoje voltaram. E percebo que o dia terá o ritmo da poesia.
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