sobre o frio
Reparo no sol que os prédios escondem e nas ruas sombrias que afundam o vento. Os andares mais altos dos prédios abençoam-se dos últimos rastos de luz desaproveitados. As persianas estão cerradas e os edifícios desabitados.
E depois começa o cheiro a chuva. Vem sem aviso e apressa a minha ida a casa. As primeiras pingas borratam-me o papel e as últimas encharcam-me as coxas. O cinzento do paralelo fica mais escuro e a borracha dos pneus ganha um som mais húmido.
Confesso que não previ a tempestade, mas devo ter sido o único. As pessoas abrem os guarda chuvas que usavam como bengala e protegem-se da mudança da paisagem. Presunção minha foi ignorar o continuo aviso das nuvens e este talvez seja o castigo. O céu não mente, nós é que não prestamos atenção.
Escondo os livros dentro da roupa larga e vou-me abrigando debaixo de varandas e toldos de mini-mercados. O passo acelerado transforma-se em corrida e o molhar das coxas estende-se à parte de trás das pernas. Subo os cinco lanços de escadas e enfio a longa chave na fechadura. É hábito não acertar à primeira, mas lá se abre a porta para a casa silenciosa.
A escuridão do apartamento e a água que escorre dos canos fez-me mergulhar numa chávena de chá quente. Aqueço as frieiras na loiça e preparo a chegada da noite. Fecho as janelas e as persianas e ligo o candeeiro da mesa de cabeceira.
Pelo menos hoje a noite não será tão fria, creio erradamente. Acabo por dormir de cabeça tapada e tenho que usar a boca para respirar. Coloco os bracos debaixo do torso ou entre as pernas e assim adormeço. Mas esta descida da temperatura provoca-me apneia e acordo várias vezes para respirar.
Dou por mim pensar nos sem abrigo com que todos os dias me cruzo. Alguns enrolados em mantas, outros escondidos em tendas finas. Despejados em poços de urina à frente de portões de garagens acabadas. De mão esticada, seguram latas de desespero vazias e sacondem-nas para me chamar a atenção.
Quis escrever que o bom de sentir frio em casa é que voltei a hibernar em livros. Mas seria tão injusto. Tão vazio. Pavonear desconfortos mínimos como se fossem vaidades. A pele desidratada que se abriu em feridas secas nos nós dedos é o meu único problema. Graças a deus, bem sou.
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