colonialista moral

A minha avó agora acha que conheço toda a gente. Aparece alguém a dar uma entrevista na TV e grita logo “olha, anda cá ver o teu colega que está a falar!”. Sou colega de todos e eles de mim. Vó, eu conheço-os de rosto, não lhes sei o nome.
    Mas hoje não ouço a sua voz perder-se no frecho das portas semi encostadas. Hoje estou sozinho e a casa está em silêncio. Caem as primeiras gotas de chuva e escureceu cedo. Tenho os dedos frios e, se suster a respiração, consigo escutar os primeiros trovões ao longe. Isso ou anda aí um gigante entretido a tremular chapas de zinco.
    Estou rouco e já nem consigo ler em voz alta. Falo apenas quando necessário e vou-me aquecendo com dois pares de meias. Chegou aquela altura do ano em que o uso da chaleira não se restringe a ferver água para alagar a loiça. Redescubro a beleza dos chás e até os misturo no café da manhã para o aromatizar. Ultimamente tenho apreciado uma infusão de sono que, no cúmulo da coerência, sorvo num copo cheio de cafeína.
    As semanas de inundações formam tapetes de folhas que se ensopam no chão e inundam os canos. Mas o dia seguinte foi bonito e gracioso. Deu a timidez espaço ao sol e a manhã luminosa cegava-me sempre que tentava olhar o céu limpo.
    E é engraçado como ao meu cérebro custa dar sentido às dimensões dos aviões comerciais. Não venho de uma cidade de aeroportos por isso ergo a cabeça em pasmo sempre que um avião sobrevoa rente. Parece sempre tão pequeno, mas leva centenas de pessoas. É tão ilusoriamente lento, mas na verdade vertiginoso. Surpreende-me sempre como pode, um bidão daqueles, levantar voo.
    Estas minhas estupefações e introspeções calo com fones nos ouvidos. Há uns tempos li que o existencialismo é perigoso. “Forget about it, go back to work”. Gostei da ideia e, existencial que sou, pus-me logo a cogita-la.
    Mas tento que as minhas meditações sejam menos frequentes. Dão-me ansiedade a sua inquietude tirana. Surgem sobre a forma de criações que não sou permitido esquecer. Sugestões que tenho que anotar ou frases que não posso desconsiderar. O meu inconsciente é um colonialista moral que não para de me impingir ideias.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Uma ode em três partes

Isto não é uma pub

O apagão