Defunto-fantasy

Acordo sem corpo e sem vida. Os pulsos escanzelados e as canelas mais magras. Estou sem entranhas e o meu estômago é um vácuo sem transparência. A minha tez é cinzenta e o meu cabelo escasso incolor. A minha derme fina derrete-se no esqueleto e percorro a gengiva desdentada com a língua escabrosa. Apesar da leveza, sou todo peso. Ergo-me, lento, um cadáver antiquado. Elevo as toneladas do dorso e os meus ossos das mãos estalam. Pouso os pés compridos no chão e, de cima, vejo as unhas castanhas. Fico sentado na maca da solitária que, de tão ínfima, parece grande. Ergo as rótulas com o custo que me resta e visto umas calças que engolem meu calçado de caule. Aperto o cinto por três vezes e tenho que fazer um novo furo. Os azulejos da parede azul são secos e escassa-se o lume dos materiais. Tudo em que toco é terreno baço.
Depois acordo de verdade. Não sou tão pesado assim. Depois da primeira moção, o corpo rola sem bloqueios. Os braços e as pernas fortes estão exauridas da ação mental dos últimos dias, mas a cama é confortável e a almofada, até, demasiado boa. O casaco denso embrulha-me assim que me edifico e as paredes cândidas ampliam a brancura. Debruço-me sem fazer caso de como me apresento ao espelho e lavo as faces com a água fria. Desço para ferver a tisana que me esquenta os lábios. A realidade mais tolerável que o sono. 

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Uma ode em três partes

Isto não é uma pub

O apagão