Despertam-me passos múltiplos que pisam mortalmente as escadas do lado de fora da minha porta. Todo o meu quarto marítimo treme e o soalho estala quando me inclino, contrariado, para fora de cama.
    É de madrugada e abro a cortina para um sol poveiro que não teimou em nascer. Olho algumas gaivotas, mas não ouso tocar no ferro enferrujado da janela por abrir. Circunscrevo-me neste ar carregado que me faz tirar a roupa e arregaçar as calcas. Faço um curativo aos meus calcanhares em ferida e deixo-me ser.
    Ouço vozes altas e estrangeiras e acordei para cinco despertadores que não o meu. A privacidade é desnecessária numa manhã de hostel. Organizo-me neste espaço minúsculo e tento movimentar o corpo para me reavivar. O sangue de veias forçosamente bombeadas oferece-me estamina. 
    Por cima da minha cama existe uma boia decorativa. As paredes são de um azul descascado e o teto de madeira é inclinado. Pendurado algures está um quadro com o famoso beijo entre um marinheiro e a sua amante. Dois rostos anónimos que se imortalizaram num ato cujo contexto desconheço.
    Ouço tosses fortes e doentes. Ouço cuspir e clarear a garganta e ouço o ranger da minha cama. Depois ouço o meu estômago vazio e vejo-me ao espelho. Tenho a barba totalmente aparada e algumas marcas da lâmina. O meu rosto está macio e olho-me como um estranho de há muitos anos. Recordo os lábios próximos que ontem me diziam ter contemplar de criança.
    Dói-me o corpo e há dores que me sabem bem. Há solidão que me preenche, porque acaba. Daqui a menos de uma hora apanham-me para o trabalho. Descerei três pisos perigosos e espera-me o que ainda não conheci. Maio foi-me bom.
    Entro na casa de banho de azulejos azuis e espero que a água fria se torne quente. Investigo como encerrar as portadas tocadas por milhares de histórias semelhantes à minha e descubro restos de sangue antigo. Tomo um duche frio e a sabão antes de um café improvisado.

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