Insónia



               O dia de Alex foi deprimente. É daquelas sextas feiras que nunca mais acabam e que cada segundo que passa parecem dez. Todos os colegas de turma pareciam estar a divertir-se, convivendo entre gritarias malucas quando o toque final soou, mas Alex não parou para conversar com eles este final de tarde.
               Saiu da escola em passo lento, mal ouvindo o som dos carros devido ao volume a que os seus headphones tocavam uma música eletrónica que estava a dar na sua estação de rádio favorita.
               Não sabia porque estava deprimido. Não era costume isso acontecer. Ainda por cima às sextas feiras que eram para ele um dia sagrado em que ficava acordado até tarde a ver televisão, no PC e a ouvir música nos seus headphones.
               A música que acabara de começar na rádio era-lhe familiar mas não era o seu tipo de música, pelo que deixou os headphones escorregarem até o pescoço enquanto andava, ouvindo o som dos carros que poluíam aquela rua de Braga.
               Acabou a Sta. Margarida e ouviu uma mulher que gritava para alguém em frente da rua do Sá. Não tinha grande vontade de voltar a cabeça para ver quem estava a discutir com quem, mas viu-se obrigado a voltá-la quando aquela discussão começou a tornar-se irritante devido ao tom de voz da mulher.
               Quando olhou na sua direção, viu uma mulher entre os 40 e 55 anos que segurava dois sacos de compras em cada mão e que olhava em direção à sua linha do horizonte, discutindo com alguém. Alex tentou ver para quem é que a mulher se dirigia com tais insultos, mas o seu olhar seguia o vazio, o ar. A mulher estava a falar sozinha.
               Pelo canto do olho Alex viu uma estudante (provavelmente da sua idade) que olhava com igual curiosidade para descobrir a quem a senhora se dirigia. Pouco depois um grupo de alunos mais velhos aproximaram-se da senhora e riram-se das suas figuras.
               Era mais uma maluca do mercado.
               Alex voltou a colocar os seus headphones - quando uma nova música começou - e seguiu até casa, inalando aquele ar poluído.

               A sexta feira fora diferente das outras. Ele estava cansado e aterrou na cama logo após o jantar.
               Teve insónias nessa noite e foi acordado várias vezes pela mãe que o ouvira gritar.
               No dia seguinte acordou as 6:30. 6:30! Quem é que acorda a estas horas num sábado!?
               Olhou para a cama do lado e o irmão ainda dormia. O pai também ainda estava na cama, mas a mãe deixara-lhe um bilhete a dizer que saíra para ir ver a avó  ao Porto e que só voltava mais logo. Esta deixara-lhe também um rico pequeno almoço que ele devorou em poucos minutos até arrotar.
               Acabou por se deitar no sofá a ver uns desenhos animados meio estranhos que passavam na televisão e acabou por adormecer tempo depois com os headphones ao pescoço enquanto que na rádio anunciavam uma noticia sobre overdose ou alucinações ou coisas do genero. Odiava a rádio de manhã.
               - Alex! Ricardo! – mas Alex e o irmão estavam a dormir – Ricardo! – continuou a chamar João, um vizinho da mesma idade do irmão de Alex. – Alex!
               Alex acordou com uma voz irritante que chamava por ele.
               - O puto não se cala – sussurrou.
               Colocou os headphones nos ouvidos e aumentou o volume do som, mas a voz de João, um miudo de oito anos, parecia aumentar à medida que o som da rádio também aumentava.
               Alex viu-se assim obrigado a levantar-se do sofá e ir à varanda para que o miudo não acordasse toda a vizinhaça.
               Merda ‘pa ele.
               - Olá João – disse-lhe com uma voz sonolenta e amuada.
               - Querem vir cá a casa? – perguntou-lhe entusiasmado.
               - Meu, são 9 horas...
               - Eu sei, mas é que logo não vou conseguir ir para aí brincar com o Ricardo...
               Graças a Deus.
               - Não faz mal – disse Alex ancioso para que ele se calasse – vou dormir. Xau. – e fechou a janela antes de ouvir a ultima frase do João que o suplicava para que fosse acordar o Ricardo.
               Alex subiu lentamente as escadas até ao quarto e voltou a adormecer.

               Acordou às duas da tarde ainda carregado de sono.
               Olhou para o telemóvel e viu que tinha três mensagens por lêr. Uma da mãe a dizer que ía chegar mais tarde que o previsto e três de um colega que lhe pedia para escrever um trabalho de três páginas porque tinham que o apresentar segunda.
               Mas ele não estava para trabalhos. Sentia-se completamente drogado devido ao excesso de “dorme-dorme” e teve que se encostar à parede para conseguir descer as escadas até à cozinha. Lá, comeu a segunda dose do pequeno almoço, baseado em meio pacote de cereais e um litro e meio de leite meio gordo.
               Estava saciado e o sono passara.
               O irmão – Ricardo – passou a correr no corredor e cantarolava: ‘’O João não me apanha, o João não me apanha’’.
               João? Mas então o puto não tinha ido embora?
               Ainda tentou espreitar pela porta para ver se o seu irmão se ía deixar apanhar pelo João mas quando o fez já os dois tinham descido as escadas para o piso inferior.
               O pai estava na sala a ver um jogo de futebol americano. Não fazia sentido o pai estar a ver aquilo, ele não é grande apreciador de desporto.
               - Olá pai – cumprimentou.
               - Olá – disse o pai fazendo uma voz exageradamente grossa de modo a imitar a voz do filho.
               - A mãe só volta muito mais tarde.
               - Sim já li. A Senhora Deolinda Carolina – disse o pai mundando o tom de voz para sarcástrico – anda sempre fora de casa.
               Alex fez um sorriso forçado e subiu as escadas velozmente, saltando um degrau a cada passada. Enquanto se vestia, ouvia a voz do irmão, dois pisos abaixo que falava entusiasmado com o vizinho. Mas do João nada se ouvia. Até admira, não se ouvia a voz esganiçada do puto. Devia estar doente de certeza.
               Após vestir um simples fato de treino, Alex desceu as escadas enquanto digitava uma resposta ao seu colega, informando-o de que só iría tratar do trabalho no dia seguinte. Sentou-se ao lado do pai no sofá e uma das equipas fez touchdown.
               - Fogo! – gritou o pai.
               - Não te sabia tão apreciador de futebol – disse ao pai.
               - Oh, até parece que não sabias – respondeu-lhe.
               Na verdade não sabia, mas também não estava com disposição para discordar com o pai logo pela manhã. Manhã, salvo seja.
               Continuaram calados durante o decorrer do jogo, assistindo às violentas pancadas a que os jogadores eram vítimas naquele furioso jogo.  Até que o pai decidiu quebrar o silêncio:
               - Porra, aquele João não se cala!
               - Olha que eu ainda não o ouvi hoje...
               - Como não? Ele está lá em baixo, ouve-se perfeitamente.
               - Mas está bem silêncioso, só se ouve o Ricardo.
               - Só se ouve o Ricardo? Então o puto não se cala e não deixa ninguém falar, com aquela voz de gaja!
               - Oh pai deixa-te lá disso, sabes muito bem que não se está a ouvir nada.
               O pai ignorou-o e levantou-se para festejar o touchdown da sua equipa, fosse esta qual fosse.
               O jogo tornou-se cansativo tempo depois porque os jogadores estavam sempre a lesionar-se. Alex levantou-se. Foi em direção ao corredor e quase era atropelado pelo seu irmão que gritava para o João: “Não me apanhas, não me apanhas”.
               Alex riu-se.
               Pouco depois Ricardo começou a discutir com João:
               - Não, não tocas-te! – pausa – sim, mas tocar na camisola não conta – pausa – está bem conta, mas vamos repetir porque eu não sabia – e começou a subir as escadas numa grande correria olhando para trás e a dizer ‘’Não me apanhas, não me apanhas”.
               Alex riu-se. Putos. O João não estava em casa, o seu irmão é que o estava a imaginar lá e estava a brincar como se ele ali estivesse. É que ainda por cima o pai também estava a alinhar na brincadeira a dizer que estava o ouvir o “puto”.
               Alex subiu as escadas e entrou no quarto (partilhado pelos dois) onde o irmão falava em direção à janela. Tinha as mãos levantadas e estava a jogar à sardinha com “o João”.
               - Não te cansas moço? – perguntou ao irmão mais novo.
               - Não me canso do quê? – perguntou-lhe o irmão voltando a cabeça – fogo! Fizeste-me perder Alex!
               - Deixa-te de cenas, Ricardo. Não te cansas de estar aí a imaginar o João?
               - Mas está aqui o João!
               - Ai é?
               - É!
               - Então mostra-me onde está o João – pediu-lhe Alex.
               - Então, está aqui! – disse o irmão convicto, apontando para a janela.
               - Ahh, tens toda a razão – disse o Alex num tom de gozo – olá João, desculpa não te ter cumprimentado ha bocado – e fingiu que cumprimentava o vizinho, abanando a mão no ar.
               Putos. Pensou mais uma vez antes de saír do quarto. Chegou à sala e o pai estava a assistir a uma série na TV.
               - Eu não percebo como é que o Ricardo tem tanta paciência – disse ao pai.
               - Mesmo – concordou não desviando a atenção do ecrã da televisão.
               - Quem é que faz um amigo invisivel e brinca com ele?! – questionou-se.
               - Estás a falar de quê? – perguntou o pai.
               Desta vez o pai desviou a atenção da televisão para ele, como quem diz que não estava mesmo a perceber o que se estava a passar.
               Alex suspirou:
               - Então o Ricardo está a imaginar que o João em casa!
               - Imaginar? – perguntou o pai.
               - Sim imaginar!
               - Alex, larga as drogas.
               - Oh pai ‘tás a brincar? Sabes muito bem que ele está a fazer isso.
               - Está nada. Ouve-se perfeitamente a voz do puto.
               Não ouço nada. Só consigo ouvir o Ricardo a falar com o amigo invisivel – o João.
               “Eles” começaram a descer as escadas até o Ricardo se sentar no sofá.
               - João, desvia-te da frente da televisão – pediu-lhe, como que ordenando.
               - Ricardo isso está a perder piada – disse-lhe o irmão.
               - Isso o quê?
               - Pára de fingir que o João está aqui!
               - Mas ele está aqui!
               - Aqui onde!?
               Ricardo apontou para a frente da televisão – Aqui!
               - Já não mete piada, maninho – confessou-lhe Alex.
               O irmão voltou a insistir e a apontar para a televisão, convencido de que o vizinho estava mesmo lá. Através da análise dos olhos do seu irmão mais novo, Alex percebeu que ele não estava a mentir. 
               - Pai? – chamou o filho mais velho de modo a chamar-lhe a atenção – diz ao Ricardo para parar com isto.
               - Alex, pára mas é tu com isso! – ordenou-lhe o pai.
               Alex percebeu que o pai também estava a falar a verdade.
               Será que estou a ficar maluco?
               De repente o mundo começou a girar lentamente à sua volta. Será que a extra dose de leite lhe deu a volta ao cérebro? Não, isso é impossível, o leite não provoca esses efeitos secundários, tinha quase a certeza disso.
               Alex e o seu pai continuavam em debate até que o tom das duas vozes foi aumentando de maneira a superarem-se e pouco depois estavam numa discussão acesa.
               - Carolina! Carolina! – acabou por chamar o pai.
               Porque é que ele a está a chamar? Ela não está em casa.
               O pai olhou para a parede da sala e começou a falar com “a mãe”:
               - Tens que tirar o telemóvel ao teu filho que está a matar-lhe neurónios – depois virou-se para Alex – Alex, dá o telemóvel à tua mãe – ordenou.
               - Como é que esperas que eu lhe dê o telemóvel? Ela não está aqui!
               - Dá-lhe! – voltou a ordenar o pai.
               Alex começou a sentir-se tonto. Era impossível aquilo estar a acontecer. Estaria morto? Estaria numa cena pós-vida? Talvez isso fizesse mais sentido. Mas não! Ele estava bem vivo!
Teve que se segurar na parede para não caír. Decidiu saír de casa e correr para longe daquela situação. Correr até não mais parar e sentir o vento despentear-lhe o cabelo.
Quando voltou já era de noite e acabou por dormir que nem uma pedra.

A mãe acordou-o no dia seguinte e ele concluiu que tudo que se passara no dia anterior tinha sido apenas um sonho.
Mas foi real.  Certo?
- Então sobreviveste bem sem mim o dia todo, ontem? – perguntou a mãe num tom carinhoso.
- Sim – respondeu Alex com uma voz sonolenta.
- Vá, levanta-te para irmos à explicação.
O dia estava chuvoso e era dificil ver-se a estrada apesar dos limpa pára-brisas estarem no máximo.
- Mãe, passou-se uma coisa estranha ontem – disse Alex.
- O quê, filho?
- Parecia que o mundo me tinha trocado as voltas e o pai começou a imaginar que estava a falar contigo e...
- ‘Pera – interrompeu-o a mãe virando-se para o acento traseiro – Ricardo pára de cantar e deixa o teu irmão falar!
Esteve quase para desmaiar. Será que estava a ficar louco ou será que tudo que estava à sua volta estava a enlouquecer menos ele? O Ricardo estava em casa! A dormir!
As lágrimas de medo começaram a escorrer pelas duas faces.
Isto não pode estar a acontecer! É impossível!
Estava mesmo para se atirar do carro para fugir aquele pesadelo.
               - Que foi filho? – perguntou-lhe a mãe no seu tom suave, calmo e inocente. 
               Não conseguiu aguentar. O medo percorreu-lhe todo o corpo, até que uma das mãos o desprendeu do cinto de segurança e abriu a porta do carro. Atirou-se.

               Acordou.
               Alex tocou-se.
               Foi só um sonho!
               Ainda era sexta feira de manhã e ele não conseguia acreditar que tinha sido um sonho! Viu que tinha estado a chorar porque tinha os olhos turvos e as faces húmidas.
               A mãe apareceu à porta do quarto – Filho – disse – gritaste durante a noite.
               - Eu sei mãe – respondeu Alex.
               Ele abraçou-a numa abraço reconfortante.
               Mas o problema era que... a mãe não estava lá

                     (sonho)

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