O concerto do madrugador

O camião do lixo da 1 já passou e agora, às 2h, ainda acordado por doses de cafeína tardias, o que me chega é o clarinete distanciado por duas janelas abertas: a minha e a do músico, que vou vendo chegar de carro em manhãs tardias, sempre de estojo às costas. 
    Inspirado pela noite quente que ressaca os arraias dos santos, ele vai ensaiado as notas e dá tempo suficiente para respirar entre elas. Podia perfeitamente transformar o serão num concerto para madrugadores, mas o nítido ensaio não chega a terminar nenhuma das melodias, deixando assim a refeição, saborosa, interrompida, como um castigo de quem prefere experimentar, em vez disso, pedaços, excertos, estrofes desagrupadas que se vão ritmando com a comichão que a noite quente me provoca na pele arranhada por unhas roídas.
    Quando chegam as 3, continuo sem sono e amaldiçoo o cobertor quente e a preguiça que tenho em me levantar para o trocar. O músico deve ter-se vitaminado do mesmo que eu - suponho que a água olímpica venha dos mesmos canos - e agora acompanha-se de toda uma banda pré-gravada, ao estilo indiano, com direito a vozes que urram e tudo. 
    Pergunto-me o que estarão os vizinhos a achar de tudo isto; eu não gostaria, caso esta fosse a única razão a impedir-me de adormecer - mas suspeito que estejam demasiado inebriados pelo quarto sono para sequer notar a matiné que se criara. Pergunto-me também se isto acontece todos os dias, a uma hora em que ninguém está consciente para poder protestar ou celebrar.
    Estivesse aqui alguém que me coçasse as costas, já teria adormecido. E assim que a música para, ouve-se apenas um silêncio estático e o azul da noite. Vão arrancando alguns motores ao longe e vou ouvindo cair, no chão ao lado da cama, as unhas que vou partindo.
    Às 4 era só silêncio. Não havia músico, nem carros, nem passos, nem vozes perdidas. Às 4 era só a minha janela azul e o telhado da casa sobrelotada à frente. E na ausência de estímulos e de enfado que me desassossegasse, o sono veio, já com remorso, desculpando-se pelo atraso, sabendo que poucas horas de descanso lhe sobrariam.
    Acordei 12 quartos de hora depois para um sol direto nas beiças, que me ia rasgando a pálpebra e talvez me tenha avermelhado a pele. Abri a persiana, maior, barulhenta, e dei a saber ao mundo que acordei. Varri o chão e, ainda de camisola de dormir, lavei a cara e escovei os dentes. Bebi água, dei de comer aos pássaros, e dei pouco tempo ao pensamento para pensar antes de sair de casa.



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