Filho de peixe

Vergonha não é roubar. Vergonha é roubar e ser apanhado. Foi com este lema que cresci a ouvir a minha mãe dizer. Ela levava-me no carrinho de bebé e escondia os pacotes de leite mais caros nas minhas costas. As bolachas de marca que eu mais gostava, demasiado custosas para comprarmos, escondiam-se no meu carapuço. Os sugos que eu comia aos lanches iam parar aos meus bolsos de velcro e as uvas picava-as na hora, antes sequer de irmos para a saída. Ninguém se iria lembrar de revistar as roupas de uma criança.
    Ela – aprendi que não podemos tratar os adultos por “ele” ou “ela”, mas neste bilhete escrito em guardanapo tenho total liberdade – fez isso até eu ser demasiado grande para andar de carrinho. Fazia-o até quando deixei de gostar das bolachas mais caras. E aprendi assim a ser olhado com estranheza. Lançavam-me desprezo, como se houvesse algo de errado comigo. Uma criança tão grande, com os pés a varrer o chão do super mercado. Mas isso deu-me resiliência. Ser mal-visto, sabe-lo e persistir. E a verdade é que sempre resultou e com essa tática nunca fomos apanhados.
    A segunda tática descobrimo-la por erro quando, nos meus anos, nos esquecemos de pagar um boneco de ação e saímos sem prestar contas. Esta consistia em levar um saco extra, vazio, na mão, colocar um ou dois artigos pequenos, mínimos, e sair casualmente pelo sítio por onde entráramos. De mãos dadas, cumprimentávamos o segurança com um sorriso, e nunca nos pararam.
    A terceira tática era semelhante, mas com uma mochila. Mas a quarta tática falhou e ela teve que cumprir 70 dias de serviço comunitário. No final só acabou por fazer 56, porque o juiz teve empatia pela mãe que roubava pelo filho. Mas passado um tempo percebi que não o fazia por mim, mas por ela. Eu era apenas um meio para justificar uma ação que passara a adolescência a fazer. Era tudo o que sabia, a realidade que conhecia. E eu viria a ser igual.
    Durante o tempo em que serviu pena, senti a responsabilidade de ser o nosso ganha pão. Vivíamos nos subúrbios e eu ainda era demasiado novo para conseguir trabalhar de forma legal. Ilegalidade por ilegalidade, fiz o que sabia. 
    Vergonha não é roubar. Vergonha é roubar e ser apanhado.
    Fazia-o porque precisávamos. Não era uma questão de luxo. Não trazia extras, apenas o essencial. Aprendi que as melhores ladroagens não envolvem zero gasto. O truque ir com dinheiro, fazer as compras, e levar para casa mais artigos do que se pagou. Toda a gente suspeitará de alguém que sai de um estabelecimento de mãos a abanar. Sei-o por experiência. Já o fiz várias vezes, quando não encontrava o que procurava, e olhavam-me sempre com desconfiança.
    As minhas táticas foram-se tornando mais elaboradas. No saco do pão colocava 7 e dizia-lhes que contabilizassem 6. Cheguei a pôr 11 e a conseguir que computassem 8. Às vezes escondia os mais caros no fundo e tapava-os com os mais baratos. Nos dias de frio assolapava os artigos pequenos dentro das mangas e depois arregaçava-as para que não se notasse a forma por dentro do tecido. Quando chovia, levava o guarda-chuva pendurado ao pulso e deixava os artigos cair da mão para dentro do chuço. Por vezes colocava todos os produtos na caixa, mas deixava um extra na mão e ninguém se apercebia. Outras vezes escondia-o atrás do telemóvel, ou da carteira, e consegui sempre passar.
    Nunca fui apanhado. Aliás, das duas vezes que me barraram, nunca surripiei nada. E das duas estava encapuçado. Paguei as compras, saí e, já na rua, vieram os funcionários a correr. Levei a mal, levei a peito. Como se atrevem a suspeitar de mim. 
    Em alturas em que a vida me sorria, ou estava ocupado com tarefas que me interessavam, não havia aborrecimento que me levasse a furtar. E nunca tirei de pessoas individuais. Quando o fazia era a coletivos ou entidades corporativas. Cheguei a trazer um cinzeiro de uma pequena loja mas, apercebendo-me da sua dimensão, arrependi-me e devolvi no dia seguinte. 
    A minha mãe morreu sem causas mal acabei os estudos, quase como se soubesse que eu já podia cuidar de mim. E podia, tanto que com o tempo deixei de defraudar por necessidade, mas por exaltação. Levava-me a euforia de saber bem enganar e a superioridade que isso me trazia. No final era uma experiência quase espiritual. Permitir-me à confiança de um deus – chamemos-lhe sorte, ou destino – que decidia se seria, ou não, apanhado e as suas consequências. 
    Guardo comigo uma memória, essa dada: estávamos na mesa redonda da cozinha, a minha mãe  eu, a jogar à Glória. Não tínhamos colegas ou vizinhos amigos, por isso cada um de nós tinha duas peças e jogávamos como se fossemos quatro. E ela – ela, a minha querida mãe – perguntou-me o que eu queria ser quando fosse grande. Não sei, disse, não me interessa. Quero viver contigo para sempre.
    Ela sorriu. Mas não podes fazer isso, filho. Pensa lá. Lancei os dados. Seis e seis. Andei as doze casas. Vou ser porteiro de um hotel rico ou presidente da república. Ela riu. Voltei a lançar. Quatro e três. Andei as sete casas.
    Perdi esse jogo. Números grandes não significam vitória, porque depois tens que andar para trás caso não calhes na casa certa. E a minha mãe nunca me deixou ganhar. Acho que poderia ter sido muito rica se tivesse apostado em casinos, mas não havia disso onde cresci. 
    Hoje recordo essas memórias enquanto me vejo ao espelho. Coloco os botões de punho e penso na minha mãe, de cabelo loiro e crespo. Aperto o relógio no pulso direito, porque era onde ela o usava, e tento lembrar-me da sua voz. Peço que me ajeitem a gravata, porque ela nunca me ensinou e então nunca quis aprender, e aprecio o meu cabelo aprumado e a barba feita. Finalmente tiro o bilhete escrito em guardanapo do bolso e murmuro uma última leitura. Antes de entrar no palco coloco o alfinete da pátria do lado esquerdo e lembro-me dela. Ela, a minha mãe.

Comentários

  1. Que bonito texto Pipo... ao ler cada frase visualizava tudo em "frames per second"! Isto dava uma bonita curta.. adornada apenas pela tua voz-off! ❤️

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