Saudades Precoces
Regressei hoje a Lisboa e dou por oficializado, assim, o fim do Natal. Na verdade janeiro já começou há uns dias mas enquanto estive no conforto em casa, era natal.
No dia 7 já faz um ano que me mudei para aqui e comecei a viver sozinho, mas hoje custou-me tudo como se fosse a primeira vez. Desci o passeio da rua barulhenta e tive que reaprender o jeito de colocar a chave na portada da rua.
A mala, mais uns segundos e rebentava; trouxe-a empanturrada com mimos da mãe e depois deixei tudo a fazer stock no armário da cozinha. Até incensos e detergente da roupa trouxe.
O almoço foi tardio, já perto das 17h. Se a minha avó soubesse repreendia-me logo: “tem algum jeito estares tanto tempo sem comer, isso faz-te mal ao estômago”. Mas hoje não há ninguém aqui que me fale; e o silêncio das paredes vazias é a única coisa a impedir-me que me desmanche. Se falasse, neste momento, fraquejava-me a voz e chorava.
Não sei, estou sensibilizado. Foi-se mais um ano e a vida não será mais como era antes. E ainda bem, porque não o quereria; mas desta vez sinto-me tão nostálgico. Aqui, longe, até os tupperwares que trouxe com os restos de comida congelada contam uma história.
Nunca me vou habituar a despedidas e invejo mesmo aqueles que podem seguir os sonhos perto de casa. Eu não posso e não puderam os meus pais também. É como se na família existisse a sina de que tornar-se adulto é sinónimo de partir. E depois voltar pode parecer derrota.
Acho que o problema é que, passado tanto tempo, me está a ser dada a interrupção para pensar. Este último mês pude respirar, absorver, abraçar, e este suspiro longo tirou-me a azáfama que me fazia aguentar a distância.
Hoje ainda a camioneta não tinha chegado ao Porto e já me sentia oco e só. E se no início do ano passado me imaginava viver aqui para sempre, hoje a situação mudou. Foi enquanto colocava as cruzetas novas no guarda-fatos entortado pelo chão inclinado que percebi que isto não é vida. Que este esforço dos últimos meses, por muito frutuoso, foi sofrido e que a vida, na verdade, não tem que ser.
Stop drinking the cheap whisky, li há uns dias. Não aprecio álcool, mas gostei da analogia. Se estou longe de casa, pelo menos tem que valer a pena.
É espantoso como são as pequenas ações que ficam cravadas na memória: levar os pratos para a mesa de jantar; o percurso de nos cruzarmos no corredor; o levantar dos pratos no fim das refeições; as conversas com a minha mãe enquanto tratamos da loiça; a cama que se deixa negligenciada; os encontros de madrugada com o meu pai quando se prepara para ver um filme; as lâmpadas amarelas do corredor; o enxotar dos gatos quando insistem subir para o balcão ou para o nosso colo enquanto comemos; o quentinho da lareira; as luzes de presença do meu irmão; o cheiro do aquecedor a gás; a minha avó a gabar-se dos segredos da longevidade; as notícias como ruído de fundo; o café matinal ao abrigo de um sol frio; e o curto interregno depois das refeições, em que todos se parecem esquecer que a vida continua e se permitem a estar sentados à mesa a conversar.
Pelo caminho deixei-lhes uma mensagem para que aproveitem esses momentos e se deixem ficar mais tempo à mesa no final das refeições. No final só nos sobra a memória e a memória só se enche de “Conversas Importantes”.
Mas é curioso como na altura nada disto parece significante. Mesmo quando estou em Braga, não estou sempre com eles. Mesmo quando estou na casa de Amares, não estou sempre com eles. Mas sei que adormecemos debaixo do mesmo teto e que, se quiser, os encontro na divisão ao lado.
É curioso também como o amor parece ganhar força na distância. Quando lá estou não passamos dois dias sem discutir, mas pelos menos no conflito existe pertença.
É por isso que quase admiro quem não é próximo do seu seio familiar. Não compreendo, mas quase valorizo esse desapego. Na minha família somos poucos e cada vez menos, mas une-nos o carinho e as turras.
Começo a suspeitar também que o amor se vá, com o tempo, descentralizando. Os meus pais não são tão apegados pelos deles porque distribuem os afetos pelos filhos, o parceiro, amigos, trabalho e passatempos. Eu talvez tenha o meu amor demasiado concentrado. A minha mãe confessou-me ter criado uma barreira emocional para superar as perdas por que passou. Talvez seja esse o segredo. O meu pai, que tantas outras perdas teve, não o faz tão bem. Por muito que se tente esconder na frieza, é capaz de se emocionar com o desabrochar de uma flor.
Talvez seja mais como o meu pai. Sei bem que daqui a meio século, quando eles já cá não estiverem, terei que empoeirar todos estes textos e trancar numa gaveta estas memórias. Se me lembrar disto, sufoco.
A verdade é que por muito que não possa passar a vida a beber do whisky rasco, também não posso passar a vida a comer sobremesa. Os meus pais, a casa, a minha cidade e o conforto são aquela sobremesa doce que só se pode comer de vez em quando. Ali estagnaria sem as asas que em mim vão crescendo, porque ali tenho tudo o que preciso.
A sobremesa vem depois do prato principal, por isso agora está na altura de voltar à caça. Assim, vendo-os de novo, levo-lhes uma merenda farta.
escrito a 4 de janeiro de 2024
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