O ócio trovante

No outro dia vi-me nostálgico de memórias que não sei nomear. Acompanharam-me cantigas antigas que na infância costumava repulsar, mas que agora revivo com toda a saudade. E então percebo que a infância nunca existiu; que só sabemos dela quando somos adultos e, enquanto adultos, já passou. 
    Estas eram músicas de gente como a gente. Zeca Afonso, Sérgio Godinho, Fausto, Luís Represas, Jorge Palma e José Mário Branco. Não combinavam com o meu gosto, mas lembrome do meu pai dizer isto à mesa: “eu quando era pequeno também não gostava, mas agora até choro quando as ouço”. 
    Estive pessoalmente com o Sérgio Godinho na antestreia de um filme. No final do evento cruzámo-nos nas escadas à saída da sala e estiquei a mão para o cumprimentar. Agraciei a sua importância na minha vida e ele, na vulgaridade de quem o deve ouvir tantas vezes, disse um “obrigado” despreocupado. Depois fugiu com desinteresse e se refugiar longe dos jornalistas e convidados excessivamente arranjados. 
    Há umas semanas preparava-me para sair de casa de manhã e olhei pela janela para ter alguma pista do tempo. Procurei pelo vento abanar as folhas das árvores, mas não encontrei árvores em parte alguma. Tive que ir descobrir o vento nas toalhas penduradas em estendais. Parece que os ferros pendurados, que envelheceram com a tinta descascada nas paredes, são os novos participantes atmosféricos. 
    Permiti-me ao ócio no dia em que voltei a escutar aqueças baladas da juventude. Esquecera-me da sua importância, mas naquela tarde relembraram-ma – ora porque me beijava o sol, ora porque me nutriam as vozes dos trovadores. 
    Esta pausa, esta temperança, são momentos de sede. É a passividade rara de um silêncio que será um ser em ebulição. 

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