Dor na boca

No dia em que acordei às 12h17, tinha a boca dorida de ter vomitado. Os lábios pareciam mais secos de terem sido esticados e as gengivas ardiam das crostas duras e do sódio da broa de chouriço. 
    
Lavei a cara com sabão e escovei os dentes com uma escova nova que me magoou o fundo da língua.
    
Saí do quarto zonzo e com calor. As noites já estão frias, mas as manhãs veranis. No corredor grande, piso um papel A4 que a minha mulher me tinha deixado escondido debaixo do tapete de vaca.
    
Fui ao super mercado, volto às 12h30. Bjo. E um coração.
    
Desço para a cozinha e faço um chá antioxidante. Penduro-me na barra presa entre a porta e faço 5 séries de 20 elevações mal feitas, só para circular o sangue das bochechas inchadas para o resto do corpo.
    
Tenho que parar de beber até às tantas, embora de outra forma não consiga ver as repetições dos discursos que tentam justificar os ataques às flotilhas humanitárias.

Desligo o modo “não incomodar” e abro o ecrã para 22 mensagens não lidas desde ontem às 4 da manhã. Descalço-me, fico sem pijama, e vou de roupa interior para o quintal.
    
Comichão no pescoço. Preciso de fazer a barba para a reunião com o cliente amanhã. Estes 3 dias de fim de semana arruinaram-me.
    
Respondo às mensagens e faço umas chamadas, mas sem retorno. Ligo à minha mulher e deixo que aquilo fique a tocar mesmo até à voz automática.
    
Depois ligo para a oficina da mota e acontece o mesmo. Para o meu irmão, igual.
    
A paisagem está também estranhamente calada. Não se vê pássaros sequer, e só aí estranho a ausência do meu cão, de quem até agora nem me lembrei, que quase me atira ao chão sempre que me vê no exterior. 
    
Mas o portão da rua está aberto e ele deve ter ido à floresta caçar.
    
São 12h47 e a minha mulher ainda não tinha chegado. Não é que não seja comum, o tempo para ela passa diferente, mesmo com os relógios adiantados.
    
O telemóvel, a que dou prioridade para os negócios pela manhã, tem o som ligado, mas continua em silêncio.
    
Voltei para dentro quando o sol já me queimava os braços e a planta dos pés começou a doer com a temperatura da pedra.
    
Faço o primeiro macchiato do dia, a que adicionei uma gota de baunilha, e deixo-me entreter com a originalidade das publicidades que se vão repetindo na TV que não ligo há meses. 
    
E depois apercebo-me que não há publicações novas nas minhas apps, e que as emissões em direto dos canais estão em preto, só com o slogan e o logo da estação.
    
Tenho uma amiga responsável pela programação de um dos privados e penso ligar-lhe, mas não me apetece fazer conversa.

Vou para a varanda e parece-me ver uma borboleta, mas era uma folha outonal que caia. Pois é, o outono chegou ontem atrasado.
    
Reparo nos tapetes da minha sogra que a empregada tinha deixado a secar e ligo-lhe. Por esta hora já teria almoçado, mas não atendeu. A minha mulher, igual.
    
13h26.
    
Deixo-me a olhar em silêncio, para o longe, para a estrada deserta que subia para a cidade. Vazia. Ninguém.
    
E finalmente o telemóvel toca. 
    
Tiro-o do bolso e espero que seja a minha mulher, mas é um lembrete. 
    
Ir ao mecãnico.
    
Mas o homem não me tinha devolvido a chamada e eu sabia que não adiantava ligar-lhe duas vezes.

De olhos postos no horizonte e sem o som de qualquer movimento à volta, percebo. Hoje acordei e não há mais ninguém no mundo.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Uma ode em três partes

Isto não é uma pub

O apagão