Cristal frágil
Só quando me sento no calor do sofá derretido me apercebo do desconforto em que tenho vivido os últimos anos da minha vida. Coloco a música ao ritmo da minha respiração e olho para o céu de lâmpadas que iluminam a casa sazonal. Conforto. À esquerda, a parede amarela, e depois os resquícios de uma lareira que foi escurecendo o branco apinhado.
Só aqui me apercebo que tenho vivido em pesar e me habituei a ele. E se é verdade que ativamente busco o incómodo para que não faça de mim, a vida, flor murcha, também é verdade que muitas vezes me assalta sem pedir.
Mas como me poderei em comodidade constante, quando é mais fria a cama onde me deito, que o corredor sem estante? Só quando trepo outras escadas de cimento, estranho estas em que habito, que me afundam no soalho do desalento. E só sei o quão poluída a minha rua da capital, quando tiro os pés de casa e saio para o natural; e o quão fiáveis são os outros chãos, quando posso pousar as minhas coisas sem as trancar, não vão os bichos entrar.
Só aqui me apercebo que o frigorífico que sempre verte, ou o micro-ondas que me enferruja as calorias, ou a racha na varanda e o som desmontado do teto não são normais. A porta que se fecha ao empurrão e o jantar curvado na mesa dobrada relativizam a estranheza desta baixa burguesia que na verdade não é normal.
Mas se é a anormalidade que me faz, realmente, viver, como a recusaria, se pudesse? É que é do medo que se faz o corajoso, e de contrariedades o herói.
Esquecemo-nos demasiado cedo das coisas que pensávamos que nunca esqueceríamos. Esquecemo-nos dos amores, das traições, do que sussurrámos e do que gritámos; esquecemos quem já fomos - dizia a Didion.
Mas e se além de me esquecer, deixar de ser? O cristal sobrevalorizado quebra mais depressa que o vidro martelado pelo forjador sem nome, e eu não quero ser cristal.
Não quero esquecer o pavimento desnivelado nem os móveis desiquilibrados para o centro do quarto.
Não quero, não posso.
Porque é graças ao desconforto que me sou. E se o que sou não é suficiente para a conjuntura do Universo é, ainda assim, o mais suficiente que já alguma vez fui.
Já por isso escrevo. E relato. E conto. E recordo, e registo, e vivo. E repito. Porque não posso perder. Isto. Tudo. A vida.
Morre tanta vida com a memória, mas há tanta memória que, sem vida, nunca chega a existir.
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