O meu pai à 01h45

Gosto muito disto no meu pai: a forma como leva a rotina diária com despreocupação e dá sempre espaço para que, obrigações feitas, não se conforme ao apagão e priorize os pequenos prazeres da vida.
    Não é incomum, quando lá vou, dividirmos o título de coruja da noite. Mas eu posso, é legítimo. As idas a casa são umas mini férias e posso ser boémio à vontade. Mas o meu pai é assim sempre; é como encara a vida. 
    De madrugada cruzamo-nos por vezes entre idas ao frigorífico, e gosto de o ver preparar o seu ócio ao balcão, como se fosse um ritual, com os movimentos exagerados de quem sabe que lhe vai saber bem. Gosto de o olhar de relance, deitado no sofá, para se deixar adormecer com um filme e me confessar na manhã seguinte que não se lembra do final. Gosto de o encontrar à secretária, descaído na cadeira, enquanto ouve música e organiza as pastas de fotografias. E gosto de o ver na cama, de pernas cruzadas, navegar no iPad com um snack ao lado.
    Sinto que se cuida. 
    Partilhamos a filosofia de que o descanso nem sempre é sono, mas sim a sensação de se saber acordado a fazer o que se quer. Descanso é satisfazer os arbítrios que, quem dorme, não pode fazer.
    Nesta minha última noite lá, apanhei-o às 01h45. Estava no escritório, de gata ao colo, a ver um concerto Medieval de uma feira que tinham ido. "Gosto mesmo de te ver aproveitar a vida, pai" disse, baixinho, para não acordar a mãe que dormia há horas.
    Ele apaga o ecrã e levanta-se.
    "Só não fico mais tempo porque amanhã me levanto às 7h".
    Deu-me um abraço, assim meio desengonçado e de barba por fazer, e foi dormir. Às 7h veio despedir-se à minha cama e deu-me um beijo desengonçado, desta vez de pele lisa.
    E é isso. Gosto disto no meu pai. Gosto dele.



Comentários

Enviar um comentário

Mensagens populares deste blogue

Uma ode em três partes

Isto não é uma pub

O apagão