Ricardo Reis
Depois do jantar fui-me meter na curta fila da Cinemateca. Reservara o serão de hoje para uma sessão relâmpago de curtas-metragens em Super 8, e restava-me levantar o bilhete em meu nome que tinha solicitado semanas antes. O homem à minha frente era alto e elegante. Estaria nos seus 30 anos e usava uma barba rasa e negra por cima de um maxilar acentuado. Vestia um sobretudo claro, calças justas e botins e tenho ideia que tinha uma mochila estreita às costas, embora já consiga agora ter a certeza. Ele inclina a sua dimensão para o balcão e debruça-se para falar pela pequena abertura do vidro. Boa noite, diz, tenho um bilhete em nome de Ricardo Reis. Não pude deixar escapar uma intervenção. Pousei os 4 pães de noz que impulsivamente comprara antes do supermercado fechar e disse: Belo nome. Ele rodou a cabeça para mim e sorriu, divertido. Recebeu o bilhete, esticou as costas e caminhou em direção à sala cheia. É verdade, diz, vivo em poesia. Não o vi mais, mas fiquei a pensar naquilo. Como será o quotidiano de alguém a quem se chamou Ricardo Reis? Ricardo Reis! Quantas vezes ouvirá comentários como o meu, se é que alguma? Terá sido gozado em criança e glorificado em adulto? E qual será a sua profissão? Sentirá pressão para fazer arte? Fa-la-á? Fá-la-á e terá dificuldade em ser levado a sério? Usará um pseudónimo? Será Ricardo Reis um pseudónimo? Uma brincadeira para quando reserva bilhetes? E os pais? Gostariam tanto assim do escritor ou teriam um excelente sentido de humor? A verdade é que fiquei a pensar no homem e acho que tão cedo não me esquecerei das suas feições e proporções de manequim. E gostei de lhe ter falado, ainda que de forma muito breve e inofensiva. Raramente me arrependo deste tipo de intervenções. Más intervenções podem ser retificadas; não intervenções serão sempre não intervenções.
No fim voltei a passar por ele. Afinal usava All-Stars de cano, casaco escuro e pouco mais alto era que eu. Mas não perdeu a magia. Ricardo Reis, o modelo da Cinemateca portuguesa. Que num só nome carrega o meu Pessoa e o meu Saramago.
Intervenção.
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