Creme das mãos

Agora temos por hábito beber chá antes de ir dormir. Não sei se a tradição começou com ela ou comigo, mas ficou. Ela levanta-se bem mais cedo que eu e fá-lo em silêncio para não me despertar. Ilumina o teto do quarto com luzes azuis estrelares e vai-me contando sobre as revistas científicas que lê.
    Depois de um duche longo veste o pijama e coloca óleo de coco aquecido nas pontas dos cabelos. Agasalha-se com uma manta à volta da cintura e oferece-me um creme das mãos para sarar as frieiras.
    Eu vou-a ensinando a cozinhar e a nivelar a quantidade de temperos que se colocam na comida. Não me importo de lavar a loiça que ela deixa de manhã quando sai à pressa, embora preferisse que não o fizesse. Mas ela não se importa que eu deixe as janelas abertas, embora no outro dia tenha ficado doente por causa do frio.
    Ligou-me a meio da tarde para saber se eu estava em casa. Disse-me que ia sair do trabalho mais cedo porque precisava de descansar. Sentia o corpo dorido e as defesas em baixo. Quando chegou preparei-lhe um chá e ofereci-lhe a minha camisola para que se cobrisse. Adormeceu no sofá, enrolada em mantas, e eu fechei as portas para evitar corrente de ar. Dormiu a tarde toda.
    É engraçado que há dias dei por mim apressar o passo para chegar mais rápido a casa. Saí, muito breve, para um salto à mercearia, e só me apetecia voltar. Tenho-me recusado a ser caseiro, a minha tendência natural, agora ainda mais difícil de combater. 
    É que em casa ouvimos artistas passados e cozinhámos de pé entre provas de ingredientes e um jantar às três pancadas. Vamos comendo na cadeira à janela ou sentados em cima do fogão. Damos garfadas abundantes em tigelas improvisadas e colocamos a loiça preguiçosa na máquina, que depois nos esquecemos de ligar. As conversas são soltas e de improviso desorganizado, repletas da inocência de quem pouco ainda se conhece.
    Mas depois parecem dar-se passos atrás e pergunto-me se o que vejo e creio presenciar me engana. Se tudo tendo a romantizar e se aquele seu sinal em cima do lábio me mente. Casualidades, invenções idílicas. Talvez eu veja coisas que não existem e os seus boa sorte matinais não passem disso mesmo. Talvez as perguntas insistentes e o interesse demonstrado não passem de uma curiosidade geral e comum pelo mundo. Talvez a vulnerabilidade e abertura a que se permite não passe de uma forte amizade, que por si já vale tanto. Mas os talvezes permanecem. E talvez seja mais interessante assim.

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