Aproximam-se as 6 da manhã, mas é como se ainda fosse noite. O vidro da lareira está sujo, a parede negra e o metal apagado vai estalando. A quentura da sala faz-me sede e mato-a com um copo meio cheio.
Hoje durmo no sofá e aqui prefiro pernoitar sempre que venho a esta casa. É a habitação dos meus pais, que já não consigo ter como minha. Vou dormindo em muitas camas ao longo do ano, protegido por muitas paredes diferentes. Umas tornam-se amigas, outras são apenas passagem.
A casa que mais me vai conhecendo é a da minha avó, mas nem nessa revejo o meu lar. Tenho um quarto, que é um refúgio, mas nem esse mesmo escolhi. A cama usada range e os armários enchem-se mais de outrem do que mim. Vou decorando o espaço com objetos de conquista, mas perdem em número para com todos os outros. Possuo alguns bens essenciais, de verdade meus, e levo-os comigo para onde sou chamado. O lar deixo nas pessoas para as quais depois volto ou levo para as outras de que depois me despeço.
Já devia estar a dormir. Os outros foram-se há horas. Ouço-os remexerem-se nos colchões e vou escutando o seu ressonar vindo do piso de cima. Ando assim desde o solstício. Custa-me mais o calor da cama do que o frio do mundo. O meu legado resumido à servidão do outro e a minha passagem escrava da criatividade. Borbulho de viver. Embebedo-me da realidade e quero expandi-la numa tela.
Saramago está fechado ao pé de mim e nem preciso de o abrir. Há certos livros que mesmo calados me reconfortam. The Pogues ainda passam na minha cabeça e enfrento a noite de caneta em riste.
Vai-se mais um ano, e este foi-se bem.
Talvez em sua honra não durma hoje. Talvez amanhã me arrependa. Talvez vá fazer um café e faça companhia à tempestade barulhenta. Talvez a chuva me embale. Talvez o sol não nasça. Talvez nunca cheguem as seis e o mundo pare para mim. Talvez o belo seja isto. Eu calado e o resto que ruge.
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