A Revolução dos mijões

Em três dias fiz 20h de estrada que me levaram a concluir que viajar é tempo desperdiçado. Daqui a umas décadas olharão para as horas que gastamos em transportes com o mesmo desdenho com que agora julgámos gajos que caminhavam durante 40 anos no deserto. Mas o pior mesmo disto tudo é a questão do mijo. É que a companhia de autocarros lembrou-se que agora, para se mijar, tem que se colocar moeda.
Quem me conhece sabe que bebo bastante água. Isto ao ponto de uma amiga me enviar uma notícia que revelava a verdadeira causa de morte do Bruce Lee: "A maior lenda do mundo das artes marciais morreu por beber demasiada água". Rodei logo os olhos, mas li até ao fim. Pelos vistos hiponatremia é mesmo uma cena – é quando a quantidade de líquido no corpo acumula por não ser extraída de forma rápida o suficiente. E dá para morrer de verdade. 
Desta vez comprei uma viagem para Lisboa que, descobri a meio, não fazia as habituais paragens pelo meio; isso revelou-se problemático. Sei bem que estas camionetas têm uma mini casa de banho – daquelas baixinhas em que tenho que esparramar a cabeça no teto para caber – mas, assim que vou para abrir a porta, deparo-me com uma fechadura trancada e um grande “1€” em amarelo. 
Primeiro: eu não gosto de andar com dinheiro físico em viagens grandes. Segundo: mesmo que gostasse de andar com dinheiro físico em viagens grandes, não andava. Terceiro: mesmo que gostasse de andar com dinheiro físico em viagens grandes e andasse, seriam notas. Já ninguém usa moedas. Quarto: mesmo que gostasse de andar com dinheiro físico em viagens grandes e andasse com dinheiro físico em viagens grandes e fossem moedas, acho mal. É ridículo ser colocado num contexto em que não tenho outra opção que não pagar por uma necessidade incontrolável. E logo 1€! Por 1€ faço duas horas de matrequilhos..
Não é pelo euro. É pelo princípio. 
E eu juro-vos que não sou ser reacionário à toa. Acho que ser antissistema só para ser antissistema é tão mau como ser sistema só para ser sistema. Mas esta coisa dos transportes mexe comigo. 
Ainda não tenho daqueles passes mensais de Lisboa, pelo que comprar um bilhete de cada vez que entro numa paragem fica caro. Então no início do ano arrisquei fazer umas viagens sem bilhete e a coisa correu bem. A malta também me incentivava, a verdade é essa. Diziam que era na boa, que faziam todos o mesmo. Então eu comecei a achar piada à coisa e a fazer mais vezes. Claro que numa das vezes o pica apareceu. Provavelmente o único pica a trabalhar nesse dia. A multa foi certa.
Há dias voltei a andar num desses autocarros e, já bem mansinho e cumpridor, paguei a viagem. E não é que apareceram dois picas? Dois! Provavelmente os únicos dois picas a trabalhar nesse dia. Então eu começo a procurar o talão para lhos esfregar na cara e provar que estava todo dentrozinho da lei, e não é que os dois morcões passam por mim e não mo pedem? Revistaram toda a gente, menos a mim!
Mas voltemos à viagem desta semana.
Fui fazer-me de desentendido com o motorista e pedi-lhe a chave da casa de banho. Ele explicou-me que a partir de agora só com moeda. Até lhe perguntei se tinha uma chave-moeda especial, sabem? Daqueles privilégios que se tem por ser colaborador de determinada empresa. Mas não, então voltei para o meu lugar. Olhei para o relógio e ainda faltavam 2h30 para o destino. E eu tinha a certeza que o meu controlo da micção não durava mais 10 minutos.
Tentei fechar os olhos para adormecer, mas das coisas mais difíceis de fazer é adormecer com bexiga cheia. Então levantei-me, fui até à porta e comecei a explorar, feito detetive das chaves. Depois desisti. Sentei-me e pus-me a observar os passageiros. Uns dormiam, outros ouviam música e outros olhavam para os telemóveis. Mas será que ninguém mija nesta terra?
Até que um moço, ao fundo, se levanta e vai até ao motorista. Ouço-os falar e ele vai até à porta da casa de banho. E eu topo logo a cena toda. Ouço-o a tentar abrir a porta e vou a correr. 
Ele era estrangeiro e tive que lhe explicar a questão da moeda. Ficou todo chocado, mas lá foi buscar o sacro euro. Abriu a porta, mas não conseguia encontrar o interruptor. Então eu liguei a lanterna do meu telemóvel e apontei. E assim fiquei, de braço esticado, a ajudar o estrangeiro mijar. 
Ele terminou e deixou a porta encostada para mim. Agradeci-lhe e foi a minha vez. Quando saí tinha outro sujeito à espera. Segurei-lhe a porta e expliquei-lhe que se a fechasse ia ter que colocar moeda. Ele ficou todo chocado e agradeceu.
Sentei-me já mais leve e dei por mim flutuar numa tranquilidade budista. O alívio primitivo fez-me fantasiar que, a seguir aquele fulano, viria outro, que lhe seguraria a porta. E depois outro. E outro. E outro. Até que aos poucos se formaria toda uma comunidade unida pelo propósito de lutar contra os opressores que exigem moedas para mijar.
Esse evento ficaria conhecido como "A Revolução dos Mijões" e, juntos, mudaríamos o mundo. 

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