Sempre me fascinaram mãos trabalhadoras. Contemplar os movimentos quase artísticos de polegares curtos e curvados. A secura da pele, já esbranquiçada, sem cor. Agreste, áspera. Paternal. E as unhas rentes, como se aparadas por um papel de lixa agrafado em paralelepípedo de madeira. Ou aquelas mãos fortes, calosas, morenas do sol; os nós queimados, grossos, e as veias firmes e dilatadas. Ou uma mão fina, elegante, feminina. Que, propositadamente longa, roça um teclado de escritório como se de um objeto de afeto se tratasse.
    No outro dia a gata escalou-se por mim acima sem honra. Deixou-me dois furos na coxa, que se transformaram em arranhões finos de sangue. Semanas antes a roda de um carro passou por cima do meu pé e salvaram-me as sapatilhas folgadas e descompostas, que me deram espaço para o esquivo. Dias depois estava tranquilamente sentado na rocha de um rio. Um puto sai da água, meio atrapalhado, e cospe-me para as costas. Ai, desculpe, diz, assim muito casual, muito inocente; criança mesmo. Eu protesto, é certo, enquanto limpo uma bisca grossa com a mão em charco – Meu, cuspiste-me para as costas! Ainda me rio quando me lembro. A pureza de alguém que, tão inofensivamente jumento, solta um “Ai, desculpe” como quem pede um picolé.
    Estou num daqueles dias em que me apetece escrever. Em que sinto que devo. Em que tenho que, senão... Mas não tenho nada para contar. Nada para falar. Uma escrita equivalente a olhar. Parar e estar. Ser. Entorpecer. E assim adormecer. Lembrar para depois esquecer. E lembrar novamente. Ousar ser presente. Num mundo ausente. Completamente. Espírito intendente.
    Faço uma caminhada. Diz Nietzsche que “Alle wirklich großen Gedanken werden beim Gehen empfangen”. Que os pensamentos verdadeiramente grandiosos são concebidos enquanto se caminha. E sim. Diz. Nietzsche diz, não disse. Hoje, ainda, o diz. Porque poetas não falam uma só vez. Existem sempre e o que dizem não termina com eles. Não há limites à conclusão. 

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