Canção da falésia

Importa-me o arquétipo coletivo dos sinos. Descubro-os em sítios distantes e reconheço como soam semelhantes aos de casa. A estranheza deste local torna-se mais familiar sempre que, no silêncio de uma manhã branca, escuto as horas certas ao longe.
Ainda é cedo e durmo no quarto ao rés-do-chão. A janela está aberta para que a brisa me facilite o sono e ouço ao longe a melodia massajosa do primeiro sino do dia. 
Sinto nas pernas um peso invulgar e olho, a medo. Debruçado sobre os meus joelhos encontro um gato alaranjado, vadio; movo-me levemente e ele foge pela janela.
Há uns dias fiz a minha primeira máquina da roupa. Já fiz todas as tarefas domésticas, exceto esfregar vidros e tratar da roupa. Lá coloquei as camisolas de verão na porta redonda e escolhi o programa indicado. 
Depois a aquilo começou estremecer como se fosse uma máquina a vapor. Comecei a sentir a água verter-me nos pés e espalhar-se por toda a sala. Estendo uma toalha de banho no chão e correr a pedir ajuda. 
Desligámos a máquina e tentamos perceber o que terá acontecido. “Então mas isto é detergente da loiça, não é detergente da máquina!”. Parece que coloquei Fairy no local do amaciador...

No final destes dias longos, criámos o hábito do "cigarro cansado". Sentávamo-nos no pátio da residência e ficávamos à conversa entre copos de vinho, cigarros e descafeinados. Fizemos jogos de charadas cujas regras já me esqueci e partilhávamos as impressões dos dias.

Nas últimas semanas invertemos horários e das noites fizeram-se dias. Trabalhámos das 18h às 6h e as disfunções estaminais curavam-se com litros de cafeína. Numa dessas noites, enquanto esperávamos que montassem o décor no topo de uma falésia, reparei na Alice sozinha ao longe. Fumava outro blue e pareceu-me introspetiva, mas levantei-me do banco de campismo e aproximei-me encolhido pelo frio. 
Ficámos em silêncio por momentos, mas depois ela começou a cantar. A voz melódica lança cantos nórdicos ao mar e eu fico a ver as ondas morrer uns metros abaixo. Depois diz-me que a música popular portuguesa é idêntica à nórdica devido à cultura piscatória. E, para o comprovar, canta agora em português. A Canção do Naufrágio, da sua autoria.

Já lá vai, mesmo ao fundo
O navio já zarpou. 
Vai ao portão do Fim do Mundo 
Rever a gente que lá deixou.

Já partiu, vê-se além,
Em águas nunca navegadas.
As velas negras que ele tem 
Levam as almas condenadas.

“És uma alma velha, Alice Ruiz”, digo, “Posso levar-te para todo o lado?” Ela sorri e aceita o convite. “Posso confessar uma coisa?”, pergunto. “Começo a ter saudades de casa.”

A minha última cena do filme foi debaixo de um céu profundamente estrelado. As constelações mais conhecidas eram bem visíveis e as árvores traçavam a direção do caminho de terra. Depois da cena emotiva percorro, sozinho, o caminho de volta e sou assombrado por um choro compulsivo. Ajoelho-me e, junto ao chão, sinto o bom peso do céu.

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