O Sótão
Levanto-me a meio da
noite e, assim que estico a espinha, dou uma valente testada no teto do sótão
transformado em quarto amplo com escritório. A pancada foi forte e audível o
suficiente para despertar o Fernandez que, da cama ao lado, solta um “eia,
chavalo… estás bem?”. Não me recordo, se da pancada ou do sono, se lhe respondi;
mas suponho que esteja bem, sim, embora ainda sinta alguma dor.
Agarro-me à
parede das escadas sem corrimão e desço, meio às escuras, os degraus pérola,
altos e estreitos. Encontro o interruptor da luz e arrasto a porta da casa de
banho. Assim que me vejo, desfocado, ao espelho, recordo um pequeno texto que tenho
pendente nas minhas notas. Pondero se devo ou não escrevê-lo. Porque não lhe
faz jus, é demasiado curto e não quero que pareça oportunista. Mas, de qualquer
das formas, aqui o solto:
Há dois dias morreu a minha tia-avó. Nós tratávamo-la
por Tia Linda; ou, pelo menos, eu tratava. O resto das pessoas, agora que penso
nisso, chamavam-lhe apenas Linda. Linda, Deolinda de nascença, era a mais velha
de três filhos: Linda, a minha avó Nuvínia, e o meu tio-avô Fernando.
Separava-os um ano ou dois de diferença. Ela era rija de saúde, embora tivesse
um problema na perna, resultante de uma queda, que para sempre lhe afetou a
mobilidade. A voz dela era igual à da minha avó e, em chamada de telemóvel, era
impossível distingui-las. A minha melhor memória de Natal foi o Natal que a tia
Linda, rara presença, aceitou passar connosco. Era o meu pai, mãe, irmão, avó,
primo, tia e tio, e Linda. E eu que, para fazer serão, decidi cantar e fazer de
apresentador de TV. Esse Natal foi bom, muito bom. A minha tia coçou-me as
costas, o meu pai fez rabanadas e o meu primo Hugo petiscava da mesa. Vejo, num
excerto da noite, a tia Linda, no canto da cozinha, verificar o estado das
pencas e mexer-lhes com uma colher de pau. Só isso. Nada mais.
Há dois dias encontraram-na caída, já sem
vida, na casa de banho da pequena casa em que vivia. Não se sabe a causa de
morte, se súbita, se queda, mas a ela não importou. Somos nós que vamos ter que
viver com a dúvida. Eu não chorei, embora tivesse tido vontade. Não a via desde
a pandemia. Ninguém a via, aliás. Ela recusava abrir-nos a porta, não queria
ser vista desarranjada e com brancas nos cabelos. A minha avó ligava-lhe pelo
menos uma vez por semana e a última chamada tinha sido três dias antes da
notícia. Era dia da mãe e a minha avó e eu fomos até ao parque de campismo onde
os meus pais passavam o fim-de-semana. Passámos lá o domingo e a minha avó
ligou à Tia-Linda “feliz dia da mãe, minha irmã”. E a Tia Linda parecia forte,
feliz, sempre igual, como a minha avó.
A última vez que vi a minha Tia Linda,
ainda nem tinha carro. Fomos visitá-la a casa, numa altura em que a minha mãe,
irmão e eu vivemos durante um ano num dos quartos do apartamento da minha avó.
Fomos no Citroen AX verde, matrícula FL (Filipe Luís), que viria a ser o meu
primeiro carro – que descartei, anos depois, como pechincha dada, para comprar
um Rover XPTO que nunca soube alimentar a minha memória afetiva. E lembro-me
desse último dia em que a vi. Tinha várias tabletes de chocolate Milka espalhadas
pela casa e objetos de decoração antigos e inúteis. Queixou-se que não via de
um olho e sentou-se, durante toda a conversa, à frente da gigante televisão de
tubo. Tinha revistas de imprensa cor-de-rosa por todo o lado e rendinhas que
protegiam o pó dos móveis. E agora foi-se. A Tia Linda. A Deolinda. A mulher
que, nos seus tempos de glória, foi sex-symbol da vila. Divorciada,
fumava, usava saia curta e punha em causa as convenções. Foi a Tia Linda. A Tia
Linda com a voz igual à da minha avó.
À saída da casa de banho encontro o Duarte, que também
se levantara a meio da noite. Conto-lhe da minha testada e ele ri-se. Ele
entra, eu saio e vou para a cama. Os últimos dias, meses, semanas, foram uma
aventura. Viajei por todo o país em trabalho, mas sinto que esta vida de Beatnik me dá cabo do corpo. Dormi em
chãos, passei dias a alimentar-me de peitos de frangos e caminhei dezenas de
kilómetros para evitar transportes públicos exageradamente caros desde a guerra
na Ucrânia. Estive em hotéis péssimos e resorts
com spa. Hoje estou numa herdade em
Mil Fontes e é um dos melhores sítios em que estive nos últimos tempos. Tenho
comigo uma equipa fantástica que se transforma em família e aqui ficarei no
próximo mês. Less impressed,
more involved.
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