Morfeu saudosista
Desadormeço profundamente saudoso de coisas que nunca existiram e nostálgico de memórias de antes de ter nascido. Revelam-me as noites de sonhos que sinto mais falta da infância do que me lembro e manifesto cenários adaptados de realidades por que não passei.
Hoje comi de uma mesa de carvalho escura e pesada. Era longa, centenária, e cara. Ao seu redor estava a família e casais amigos que desconheço e talvez nem existam. Desfazíamos, com os dedos, cascas de amendoins fantasiosamente doirados, doces e gigantes.
A sala de estar era enorme e as portas, entre as divisões, duplas. Os tetos eram altíssimos e estavam decorados com artigos de colecionadores: cromos, emblemas, quadros, blusas, livros e revistas raros e cultura popular. O teto era negro e o material isolava o som. Havia luzes de presença penduradas nas paredes acolhedoramente megalómanas e o ambiente de festa, se não era natalício, assim se assemelhava no seu calor. Sendo a arquitetura um dos meus passados interesses, discuti-a com o meu pai e apresentei-lhe algumas ideias.
O resto da casa tinha dezenas de quartos de hotel e casas de banho compridas. Várias divisões decoradas com brinquedos raros e até alguns spas, que percorri com uma antiga paixoneta e o atual namorado, com quem tive uma certa rivalidade durante a primária por o considerar atleticamente superior. Havia, por toda a parte, animais. Lembro-me dos cães. Corriam idilicamente uns atrás dos outros e o ladrar não era incómodo, mas convidativo.
Depois, os três, disfarçámo-nos com fatos de super-heróis, que entretanto deixaram de me servir e foram descartados, e revisitámos cenas que se passaram num carnaval antigo. Relembrámos histórias com referências aleatórias e inexas e o serão foi tão pormenorizado e longo, que me esqueci. Mas no ar esteve, em permanência subentendida, as consequências de uma paixão nunca materializada e de uma rivalidade que se formara a partir de uma pseudo-aspiração. A noite tornou-se boa, arriscada e incerta, e terminou sem um desfecho.
No dia seguinte o meu irmão estava mais velho, mas não tanto como agora. Passou por mim, de tabuleiro na mão e barba feita, pela zona da restauração de um centro comercial a que nunca fui, e ignorou-me. Procurei pela mesa onde os meus pais se sentavam e encontrei-os ao longe. Eu chegara tarde e pousei o meu tabuleiro ao lado do meu pai. Eles já tinham acabado de almoçar e eu, que estava com fome, comi os restos da comida que ele deixara de parte. Perguntei pelo lugar vazio à minha frente e disseram-me que o meu irmão teve que sair.
Surgiu um empregado, que mais parecia um chef que, demasiadamente bem indumentado para a ocasião, encheu as nossas três taças com kefir. Eu provei com educação mas depois, nas suas costas, levantei-me para ir à casa de banho cuspir o líquido azedo no lavatório. Quando me olhei ao espelho, surgiram novos flashes do meu início de juventude, que se desvaneciam nas paredes encarnadas e de amarelo-torrado. Ouvi risos e alegrias e, de seguida, um novo desfecho abrupto.
Algures estou de volta à mansão, dentro de uma garagem ampla que, depois de uma certa análise, concluo ser do vizinho baixo e forte. Ele dá umas simples indicações ao filho músico e, depois, o carro da esposa entra. Ela por pouco não raspa com o espelho lateral direito na parede e, quando sai, vai à mala. De lá tira uma versão idealizada, mais moderna e minimalista, da minha antiga bicicleta. O material era mais leve, negro e metalizado. Não tinha mudanças, nem delas precisava, e não caia nunca.
Acordo com o cheiro da bola da minha avó e com dores musculares do treino de há dois dias. Levanto-me, nu, da cama, e os meus pés descalços pisam pequenos restos de peles de amendoins que descascara na ceia da noite anterior. Abro os gavetões da cómoda para procurar roupa, e encontro fotografias de colegas de infância e de paixões que achava ter esquecido. Na cozinha, enquanto encho a chávena do café, entra o meu irmão e pergunta-me o que acho da sua barba espessa. Eu digo que não gosto da forma como encaracola e ele, momentos depois, surge com ela mais aparada para uma segunda opinião. Elogio, mas digo que fica bem mais bonito com a cara limpa. Ele sorri.
Faço o meu treino matinal e sento-me à secretária para reler e estudar um guião que trata de relações juvenis, traições, aspirações e vontade de pertença. A personagem que vou interpretar tem, coincidentemente, o mesmo nome da antiga rivalidade com que hoje sonhei.
Depois do almoço saio para um pequeno passeio debaixo do sol tórrido e relembro a minha bicicleta roubada, que ser-me-ia útil agora. Dou de caras com o meu primeiro carro e descubro-lhe o espelho retrovisor direito riscado, por o ter raspado num muro depois de uma noite de festa académica. Passo por uma loja de antiguidades que abriu há uns dias na avenida e guardo-lhe a atenção. No centro aprecio famílias a comer nas esplanadas e penso em como os próximos tempos me afastarão da grande, mas não tao grande, casa dos meus pais. E sei que quando regressar jantaremos juntos novamente.
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