Hoje, à mesa:

Hoje, à mesa:
Quatro pratos dispersos sobre uma toalha azul e amarela, com desenhos de utensílios domésticos. Os talheres temo-los todos diferentes. Os mais velhos comem dos pratos verdes e o mais novo do amarelo. Eu, de costas para o forno que emana calor, troquei o meu prato habitual para receber a refeição hoje mais especial. 
    As sobras dos quatro robalos assados, que originalmente totalizavam um quilo e setecentas, terminaram num tupperware no congelador. As restantes couves e o arroz de ervilhas, mas duvido que passem do jantar. A meio, entre trincas num pão torrado, diz a minha mãe: "a esta hora está o padre a encher o bandulho em casa de alguém".
    Neste povoado a Páscoa celebra-se uma semana depois da data calendarizada. Ouvem-se foguetes durante toda a manhã e o festejo consiste na excursão da banda filarmónica que, para chegar à nossa morada, demora uma semana extra. Eles sobem a rua em fila indiana, com os pesados instrumentos de sopro e tambores, e a marcha acompanha a percussão. O padre vem à frente, com uns capangas que carregam uma cruz grande infetada de beijos.
    O chão à entrada das casas é coberto de pétalas multicolores e os portões são deixados abertos para que entrem os convidados desconhecidos. Fazíamo-lo muitas vezes quando eu era miúdo. Lembro-me do quão desagradado fiquei quando tive de interromper a cena final do Independence Day para receber tais afamados hóspedes. É que antes não se podia pausar o filme ou revê-lo quando bem se entendesse. Tinha de se cumprir religiosamente a programação das televisões. Mas na Páscoa, a religião era da igreja. A minha é que sempre esteve em filmes.
    No final destas visitas demoradas, ficavam os resquícios de um festim unilateral: as embalagens dos bolos vazias e algumas amêndoas defeituosas abandonadas no final do pacote. E lá ia o padre embora, de bucho cheio e sorriso panturrado. A banda voltava a tocar e iam para a porta ao lado para se deliciarem com o banquete do vizinho.
    De maneiras que, passados uns anos, nos fartámos deste costume e deixámos de os receber. Declarávamos ausência e as persianas ficavam fechadas durante todo o dia para que achassem que não estávamos em casa. As lâmpadas incandescentes ligavam-se logo pela manhã para iluminar as divisões mais escuras e era entusiasmante este ato ilícito. Recordo-me bem de me esgueirar para a varanda e ficar a espiar a trupe entrar na casa dos vizinhos. O meu irmão acompanhava-me na aventura. Era estimulante fingir que não estava em casa; desobedecer à tradição e ousar ser descoberto.
    Embora nunca tenhamos sido praticantes, tivemos uma educação europeia que nos impregnou uma certa reverência católica. Não abrir a porta ao senhor estava a roçar o pecado. Muitas vezes vi a minha mãe cozinhar enquanto a missa passava na TV e eu, seguro do meu panteísmo, mudava de canal e perguntava-lhe o porquê de estar a ouvir sermões milenares. Ela, uma ex-catequista, respondia que não tinha coragem de mudar de canal assim que a missa começava; que parecia mal.
    De modo que, com o tempo, passámos a ausentar-nos de verdade nos não-fins-de-semana da Páscoa. Equipávamos o Saab e a caravana com comida para duas noites e partíamos para um sítio perto da fronteira. Depois deixei de os acompanhar. A condição de adolescente afastava-me de casa e engendrava-me outros planos. Cheguei a ir pescar para o Gerês e dormir ao relento. 
    Voltei a acompanhá-los, contudo, depois de vários anos pascoalmente afastado. Ficámos aparcados perto de um moinho em Oia, num precipício junto ao mar, e eu sentia-me o filho pródigo que retornara. Enquanto digeríamos o almoço tardio e eu comia amêndoas de fruta em silêncio, diz o meu pai que o mar estava particularmente ruidoso. Depois dessa ocasião pontual, oficializámos uma separação para essa data. 
    Até este ano. Este ano passámos a Páscoa juntos, embora a tivéssemos vivido com a mesma vulgaridade do dia anterior. Não comi amêndoas ou doces típicos. Nenhuma pétala foi derramada. E não nos ausentámos. Este ano não houve campismo. Este ano ficámos em casa e assumimos, com um orgulho encoberto, a nossa porta fechada. 
    Mas este ano a banda filarmónica não passou. 
    Eram sete da tarde quando desisti de um filme que me aborrecia e fui lá para fora aproveitar os resquícios de calor solar. Sentei-me desconfortavelmente nas escadas e repousei as costas nas grades de metal. Não me dei ao trabalho de tirar o carapuço e fechei os olhos em direção ao céu. Depois, ao longe, ouço a banda, que resolveu não subir à minha rua. E tive pena. Porque revejo o puto que fui, na varanda acima da minha cabeça, espiar o padre e os músicos. E amo esse puto. Esse puto era bom. 

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