Um estranho caso de delfim

O lixo fui colocá-lo a meio da tarde, num daqueles dias em que o brumal puxava por tons amarelados. Avisaram que é das poeiras africanas e que nos devíamos fechar em casa para nos protegermos, mas em casa as janelas estão sempre abertas.
    Com o saco da areia dos gatos cheio de cascas de laranja e troços de legumes, desço a rampa de paralelos e abrando ao chegar à estrada. Ao longe encontro o Sr. Delfim lavrar um terreno que pensei não ser dele. Não o via há algum tempo e aceno-lhe com vontade. Ele demora a reagir e, momentos depois, sorri e ergue o braço para mim.
    O Sr. Delfim conheci-o na véspera de uma gripe há uns meses. É um vizinho, quase nonagenário, com quem uma vez calhei cruzar na ladeira remota. A meio de uma conversa que começara por pura circunstância, perguntei-lhe o nome. Faço várias vezes isto: perguntar nomes. Há um elo azul e invisível que se estabelece e há quase um pequeno sorriso que aceita a minha intrusão. 
     "Chamo-me Delfim Henrique Rodrigo Martins Pêra e Silva". A esposa estava ao lado e ele também a apresentou "e esta é a Helena." Então temos um Delfim Henrique Rodrigo Martins Pêra e Silva e uma Helena. Um casal que se ergue cedo para tratar da horta conjunta e não gosta de comidas modernas de plástico e açúcar refinado. Dizem apreciar, contudo, um bom tinto – e eu presumi que fossem daqueles agrestes que deixam os lábios arroxeados. Um Delfim Henrique Rodrigo Martins Pêra e Silva e uma Helena, que têm filhos que têm filhos. São ambos de antebraços fortes, embora ossudos e com veias salientes. As caras são finas e enrugadas e faltam-lhes alguns dentes que, se se foram, é por já não serem precisos.
    Deleito-me sempre que reencontro o Sr. Delfim nestas ocasiões fugazes. Quando era criança, costumava puxar os mais velhos pela mão e arrastá-los para um espaço onde pudéssemos estar a sós. “Vamos ter conversas importantes”, pedia, e eles riam. 
    Hoje parei de pedir. Inicio-as. Mas é maior o número de conversas que se terminam antes do tempo. Às vezes é preciso um estranho para se ter uma conversa do princípio ao fim. Talvez um estranho sinta a responsabilidade de ter que manter um certo grau de cordialidade que se perde com quem já nos conhece. E um estranho é mais interessado, pois sabe que as conversas não terão repercussões. 
    E eu cá gosto da liberdade de, com um estranho, não ter apelido nem passado. Não sabem que o meu sotaque de agora não é o de origem porque não me acompanharam a crescer e não sabem de onde vim. Não se recordam dos meus espetáculos de animação após jantares de família e não sabem o nome da minha primeira namorada. Não sabem que costumava, sozinho, falar inglês ao espelho ainda antes de saber falar inglês e não sabem que na escola obrigava os colegas a que me chamassem pelo nome de um personagem, em vez de pelo meu. Não sabem que costumava ler uma pequena bíblia, isolado no fundo da camioneta que me transportava para o ATL, e que isso há de ter sido uma das causas para ter levado porrada enquanto puto. Não sabem que tenho saudades de alguns brinquedos e que um dia, já um jovem, coloquei uma chupeta na boca para tentar perceber o porquê de o fazer quando era bebé. 
    Um estranho não sabe quem fui. Um estranho não sabe para onde vou. Um estranho sabe-me aqui, na suficiência de existir no presente. Sabe-me na proteção de não ter sido e aceita-o. Um estranho sabe só o pouco que sou numa conversa importante.

  

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