Compulsivo
Ouço as vozes dos homens da rádio vir do pequeno aparelho preto três portas fechadas ao lado da minha. São 14h19 e uso uns óculos de lente amarelada que embaciam sempre que dou um novo trago na chávena grande de café. À minha frente está o teclado do computador e a promessa de vir a ser mais produtivo. Não é eu que sinta que faça pouco. O ano que passou foi completo e proveitoso, mas talvez devesse tentar fazer mais nas próximas estações. Isto porque, ao final do dia, me sobra sempre tempo. E se calhar não é suposto.
Não é costume, mas hoje pus-me a pé antes do sol. Olhei pela janela e vi que ainda era noite; a estrada turva pelo frio e o nevoeiro da antemanhã. Pensei que devia ser crime permitir-se acordar a esta hora. É uma atrocidade ser-se obrigado a sair de uma cama ligeiramente fria para um ar interior mais frio ainda. Mas eu não fui. A produtividade assim o quis.
Fui ao armário mais alto, estiquei o braço e escolhi duas saquinhas de chá: uma de maçã e canela e outra de menta. Fervi a água quente e bebi. Senti-me bem e saudável. Há qualquer coisa de salubre na iniciativa e no ato de tomar um chá em vez de um café. As ervinhas aromáticas atuam como um placebo que deixa tudo mais vigoroso. Mas depois também acabei por fazer café. E enfiei as duas saquinhas lá dentro. Café aromático é melhor placebo ainda.
Havia duas coisas que faltavam à minha última rotina: beber mais água e ler mais. A primeira está resolvida; a segunda vem com o socorro da Joan Didion, por isso tem-se resolvido. O problema de erguer cedo com o desejo primitivo de fazer mais, é que chego a meio do dia e já completei tudo a que me propus. E depois dou por mim desamparado, já sem nada por fazer, e talvez procrastine. Ou isso é que é viver?
A verdade é que tenho sido bastante regrado desde que me exigi a isso. Não que antes, como disse, não fosse. Sou disciplinado e sei que a disciplina alenta a motivação quando esta perde o ânimo. Mas hoje enviei mais emails do que o costume. Li excertos de dois livros e pratiquei alguma atividade física. Vi um documentário e agora escrevo. Mais logo planeio escrever novamente, desta vez a continuação de um guião, e nas pausas vou ensaiando uma cena para uma audição que vou ter amanhã. Depois disso tenho que procurar novos monólogos para trabalhar e fazer um novo plano de exercícios. Também vou cortar o cabelo.
Diante disso tenho-me sentido fértil. Faço o almoço por volta das 15h e dá-me gozo ir riscando a lista de coisas a que me dispus. Sabe-me bem. Então o que é que falta?, pergunta-me a Compulsividade. E eu não sei se a alimente ou não. Tenho a consciência da sua permanente presença no topo na minha nuca e sei que sobrevoa a minha sombra em cada espaço que estou. Gosto dela, é minha amiga. Acho.
Há uns dias li que devia ser útil. E que ser útil não é nada fácil. Li que devia criar mais do que consumo, mas sinceramente nem sei se isso é fisicamente possível. Se não der crédito ao consumo, não me sobra universo para a criação – a flecha só se lança depois de puxada. Mas tenho medo de me deixar inebriar por uma falsa sensação de utilidade. Não quero que isto que empreendo me dê uma indevida, ou desmedida, impressão de dever cumprido. Por isso tudo o que faço tem que ter um propósito. Se tenho que ir por o lixo, aproveito e corro. Enquanto arrumo a casa, ouço uma aula. E se ao final do dia me deito a ver desenhos animados, sei que o faço porque gostava de fazer dobragens, ou porque esse momento de descanso me permite repetir tudo no dia seguinte.
Talvez não seja saudável pensar que me vai custar sujeitar-me à passividade que é ir ao cabeleireiro. Ter que me olhar ao espelho e observar os pentes prender-me o cabelo em posições ridículas enquanto passam a tesoura. Ter que me entreter a medir a distância entre os meus olhos e aqueles objetos pontiagudos. São quarenta minutos assim. E a produtividade?
A questão dos vícios é que nunca serão derrotado com uma tentativa de completa erradicação. Um vício termina quando substituído por outro. O segredo é saber escolher os vícios. A arte está em selecionar a ocupação certa. E se a procrastinação só terminar com a compulsividade, que seja. Talvez prefira negligenciar a vida por excessos do que por faltas.
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