A eletricidade falhou em toda a vizinhança. Ouviam-se vários alarmes ao longe e os cães começaram a ladrar. Depois, em minutos, a luz voltou e com ela regressou a civilização. Os cães provavelmente continuaram a ladrar e os sons do bosque à volta não cessaram, mas deixaram de se ouvir. As várias televisões acenderam-se sozinhas e as divisões da casa iluminaram-se. Os alarmes pararam e ouviram-se os eletrodomésticos iniciar novo ciclo. A industrialização regressou aos poucos e transformou-se num bulício que o cérebro aceitou como parte do ambiente.
Olho para o relógio do forno e observo os números piscar. 00:00 a vermelho, à espera de corresponderem à hora correta. Mas é uma complicação este relógio; demasiado simplista. Os botões que decidem a temperatura do assado são os mesmos que decidem as horas. Por isso não me dou com ele, é difícil de ajustar. Ou uma coisa ou outra.
À vista disso, sempre que a luz falha, olho para a numeração triste e intermitente e ignoro-a. Faço-me de desentendido quando, mais tarde, alguém me diz “olha, faltou ajeitar as horas” e se apressa a fazê-lo. Eu cá recuso-me. Não que queira vincar uma crítica ao designer responsável, mas porque me sinto genuinamente leigo no que toca a tão reles invento.
Hoje, contudo, dá-me pena. Aqueles números olham-me com tristeza e sabem que eu os olho também. Há uma tensão entre nós, mas eu podia tentar disfarçá-la caso fosse ao frigorífico. Assim, aproveitando que lhes daria as costas, ia-me embora. Mas não consigo. Dá-me dó de verdade. Então aproximo-me daquelas linhas encarnadas e o fecho do meu casaco reflete no fundo negro espelhado.
Não me vou dar ao trabalho de explicar a técnica que envolve ajeitar o relógio do meu forno, mas limitei-me a tatear aleatoriamente nos botões até resultar. Dedo mole em eletrodoméstico asqueroso, tanto bate até que vai lá. Claro que liguei o ventilador do instrumento por três vezes, mas finalmente consegui acertar as horas. Faltava-me, agora, dar o mesmo carinho aos minutos.
Decoro o número que tenho no relógio de referência. Vinte e oito. 28 minutos. Simples, 28 minutos. E coloco os vinte e oito. Eles mudam e são agora vinte e nove. Tudo bem; mais um, menos um. Vinte e nove minutos. Feito. Dezanove horas e vinte e nove minutos. Afasto-me para me ir embora, mas reparo que os 29 ainda piscam. Falta-me fixá-los. Reaproximo-me e bate-me a mais profunda realização. Reparo nas possibilidades da arma à minha frente e percebo que tenho, neste momento, domínio total.
Então agora já não sou Filipe. Sou Cronos. De repente sou dono do tempo. De repente sou pré-olimpiano e sou titã infinito. Ouço os trovões atrás de mim e vejo a minha figura erguer-se no topo de um monte que sobrevoa as nuvens. A minha forma física transfigura-se e adquire proporções gigantescas. Sou mais largo que Hércules, Ulisses e Aquiles juntos. Homero ainda não nasceu nem escreveu a Odisseia, mas tomara ele ver-me aqui agora.
Sinto o poder sangrento percorrer as minhas veias douradas. O meu cabelo longo e crespo é da cor da minha barba negra e seguro uma espécie de lança no punho direito. Uma esfinge rasga os céus e uma fénix deixa um rasto de fogo. Mais um trovão. Os quatro elementos são meus escravos e sou rei autoritário; dono de mundos e universos. Os homens lá em baixo desenrolam guerras em meu nome e as mulheres dão o meu nome aos seus filhos. Os monges registam os meus feitos em pedras e erguem-se estátuas em honra da minha hegemonia.
Pausa.
O noticiário passa na televisão. Vejo, pelo forno velho, o fecho oscilar por baixo do meu pescoço sem barba. A minha unha ruída está pousada sobre o botão metálico do relógio e aguarda novas ordens. Dezanove horas e vinte e nove minutos. Pressiono quatro vezes a tecla acinzentada e observo, com perversão, os minutos alterarem. Fixo, em segredo, o novo horário. A minha grande obra, a minha blasfémia secreta. Decido que são vinte e cinco. Vinte e cinco. 19 horas e 25 minutos.
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