Rumi

A queda de água está absurdamente ensurdecedora, mas há muito não escutava um silêncio tão profundo como este. Descalço as sapatilhas velhas e piso a relva molhada. Caminho e vou escutando os meus passos afundarem-se na lama escura. Encosto a mochila ao lado do moinho esquecido e dispo as calças. Coloco-as em cima do calçado e dirijo-me à pequena cascata.
    A atmosfera muda e torna-se mais húmida. As partículas de água flutuam no ar e respira-se o musgo e as algas. Equilibro-me nas pedras submersas e vou com cuidado até ao centro da queda de água. À cabeça chega-me Rumi. – You are not a drop in the ocean. You are the entire ocean in a drop. Tu não és uma gota no oceano, és o oceano inteiro numa gota. Mas este rio congela-me as entranhas e esfria-me o corpo. Assim é difícil perseguir a beatitude. O desconforto transforma-se em dor profunda e os ossos querem desfazer-se. A minha tíbia perde a robustez e ameaça rachar.
    Embora atrás de mim nasça um flume calmo e extenso, à minha frente expande-se a turbulência das águas. You are not a drop in the ocean, you are the entire ocean in a drop. E assim, num murmúrio tímido, proponho-me a verbalizar as minhas aspirações para o ano que vem. Receio, contudo, que soe provinciano. Sinto-me dono de um pequeno pecado assim que começo – a culpa de quem tenta materializar as suas ambições. O segredo da mais sigilosa confissão. Mas ao poucos me desassombro; entro no ritmo e afirmo previsões sem receio. Rezo, repito e comovo-me. Sorrio quando me lembro do futuro. E não me forço a dizer nada – se puder fazê-lo em silêncio, faço-o. A voz é apenas um complemento. Porque sendo o misticismo real, será gigante o suficiente para interpretar o meu mutismo.
    Mas de repente dou por mim a gritar. Preciso de o fazer. Não para que me ouçam, mas para me ouvir. Para que as vozes se enterrem na minha carne e eu assuma o que projeto. Berro. Urro. Sou livre e o ruído da água permite-me rugir sem que nenhum humano me ouça.
    Os pés, de tão gelados, estão quentes. Já não fazem parte do meu corpo e são dor e anestesia. Viro-me contra a luz intensa do sol e junto as mãos para agradecer. À água, ao céu, a mim e a tudo. Depois olho à volta e são só ulisses. Não há vivalma. Nenhum carro passa e ninguém passeia casualmente. O café ao longe está tapado e todo o espaço foi deixado ao abandono. A ave grande que exibe voos coreografados durante todo o ano também não está aqui. Sou só eu e o movimento estrondoso do terceiro elemento. 
    E assim é mais difícil. Assim não é performance. Não há um público que me incentive. Quando se faz e se cria e ninguém vê, custa. Impor-me a uma angústia privada e sem propósito causa mais sôfrego. Há um ano mergulhava sem hesitação e hoje fraquejo e não sou capaz. Ou então relembro a minha impetuosidade com engano e sobrevalorizo-a.  Tenho tendência para me recordar mais possante do que talvez me tenha sentido. Porque escrever é mais fácil do que viver. O romance não é a vida, é extraído dela. E romancear é mais simples do que existir. 
    Há umas semanas recebi um convite para participar numa sessão de partilha sobre a dor. Um encenador estava a preparar um espetáculo em torno do tema e queria juntar testemunhos. Numa sessão à porta fechada, reuniram-se atores e membros de comunidades de leitura e durante duas horas partilhámos dores e opiniões. Eu consegui identificar e raspar a espátula em alguns fósseis que me vão pesando. Fez-me bem. Compreendi que todos somos malucos e que, por esse mesmo motivo, ninguém é. Um dos membros, que ficara em silêncio durante todo o tempo, decidiu intervir no final. Dói-me tudo, disse. Dói-me tudo o tempo todo. E largou o monólogo mais poderoso e acessível que alguma vez escutei. Porque foi cru, real, no palco da vida. Não o posso escutar novamente e nem há meio de o ler. Existiu ali e morreu. Dói-me tudo, ela disse. Por dentro e por fora. E sou feliz assim.
    Ganho nova valentia e desço o degrau de pedra. Mas não me quero banhar, não me apetece. Preocupa-me mais a organização dos parágrafos que até agora escrevi e dos que ainda estão por vir. Na verdade, só quero escolher as melhores palavras para que esta narração resulte e ir-me embora. E não me surpreende esta vontade, embora a tema. Sinto uma permanente necessidade de registar em composições e pergunto-me se só me forço a viver para ter material para usar na minha arte. E se a razão para tanto querer experienciar for para poder escrever? Sujeitar-me-ei à vida apenas para construir a empatia necessária para dar corpo a um personagem? De súbito sinto-me oco. Sou escasso. Sou banal. 
    E segundos depois aceito-me como sou. A inspiração faz-me, de facto, convocar a experiência. É um vínculo que cria a vida e que cria a arte que cria a vida. Por isso aqui me têm. Um para sempre refém da vivência como experimento. Não acho que importe muito o porquê de se ter começado a correr quando já se vai a meio da corrida. O momentum agora está criado.
    A água dá-me pela cintura. Mais um passo e estou totalmente dentro do rio. Mas a adrenalina que tenho desde o grito não me provoca o suficiente. O impulso tem que partir de mim. Tu consegues. Basta uma ligeira inclinação e deixo o restante esforço para a gravidade. You are the entire ocean in a drop. Entro na água.
    Estou submerso e começo a arfar. Ofegante, vou em bicos de pés até à zona mais baixa e coloco-me de joelhos. A maré está cheia e empurra-me em direção à queda. Apoio os dois pés na parede da cascata para contrariar a força da água e afundo-me. Agito os braços para me manter nas profundezas e convido novas manifestações. Debaixo de água não respiro e está frio. O que agora declarar é o que realmente desejo. Em situação de stress sou todo urgência e descarto as futilidades. Assim sei o que quero.
    Depois levanto-me e encho os pulmões de ar. Já não tenho frio, mas dispenso esta aflição. Não quero estar mais aqui. Subo o pedregulho escorregadio e junto novamente as mãos. Agora sim. Assim seja e assim será. E dou um berro esganiçado, extasiado. Solto-o. O meu torso molhado reflete a luz do sol e os pelos longos estão arrepiados. Exclamo novo bramido. Um som agudo e animalesco. Sou feliz, Rumi. 
    Debruço-me de mãos apoiadas nos joelhos e sai-me uma gargalhada irracional. Um rir imenso. Estou embevecido. Depois choro. E choro de verdade. Sinto as lágrimas quentes escorrer na face fria e misturarem-se com as gotas que me caem do cabelo. Funde-se o doce com o salgado. Observo as rochas intocáveis e contemplo os sinais dos tempos. É este o preço a pagar pelo panteísmo? Pela arte? Pela vida? Que seja. Sou o oceano inteiro numa gota.
    Trouxe uma pequena toalha comigo, mas não a uso. Espera-me uma subida íngreme. Fá-la-ei despido, mas com roupas na mochila.

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