Nos últimos
tempos tenho escrito debruçado no telemóvel velho; o ecrã escuro e rachado.
Anoto as ideias sentado à janela de um autocarro ou de pé num metro. Por vezes
tenho que travar um andar para ir ao bolso apontar um qualquer novo
entendimento. Este método compulsivo não é o mais indicado para quem busca uma
atenção plena e presente, mas aprendi que devo correr atrás da ideia, não vá
ela fugir. Os pensamentos de rajada são peixes de difícil apanha.
Mas hoje é diferente. Hoje posso finalmente
escrever no teclado grande de um computador de secretária. Mas que privilégio,
isto. Enamoro-me das teclas peganhentas de desuso e vou passando os dedos sujos
nas palmas das mãos enquanto decido que próximas palavras usar. Coloco os
óculos de filtro de luz azul e afasto-me ligeiramente do ecrã branco. Confirmo
que tenho todos os dispositivos em silêncio e sucumbo.
Hoje dormi 40 minutos e nada me tem dado
mais prazer que viver para o cansaço. Sentir o preço de um desempenho positivo
nos ombros é um luxo. A minha canseira é diretamente proporcional ao quão
inchadas as minhas bochechas estão pela manhã e desta vez eu fui um balão. Está
lua cheia, porque quase sempre assim terminam momentos mágicos, e chego a casa.
É um dos meus lares, e têm sido muitos para enumerar. Sou tão bem recebido em
sítios que acabo por esquecer.
Na semana de trabalho que se passou
ofereceram-me a estada num hotel. Não sei dizer se era um hotel luxuoso, porque
já me habituei a caravanas e tendas, mas assim me pareceu. Tive direito a um
pequeno-almoço rico e a ginásio. Não costumo comer logo pela manhã, mas
levantei-me sempre mais cedo para colocar ovos mexidos, granola e manteiga de
amendoim num tupperware. Também levei fatias de fiambre e, a cada novo dia,
trazia-as em maiores quantidades. O café foi indispensável.
Num
dos duches diários descobri que, caso pisasse um botão no chão, a água não
coava. No dia seguinte desafiei as minhas crenças e ousei tomar um banho de
imersão. Tal ato doeu-me de prazer, mas contam-se quase duas décadas desde o
meu último afundamento. A água fervia e quase transbordou quando me deitei.
Ficou suja mais rápida do que gostaria de admitir, mas que seja. Foram dias
exigentes e não estava em condições de estar perfeito. Fechei os olhos e
deixei-me suar com o vapor que invadiu a casa de banho. Tocava o álbum “Diário”
do Dinis Justino e depois a “Something in The Way” dos Nirvana.
Saí, de pele lavada, para a noite fria da
Covilhã e dirigi-me a um restaurante para comprar o meu jantar. No último dia a
folha de chamada queria-me mais tarde e a produção deixou-me experimentar um
novo menu. Ponderei comer no local, porque gosto de sentir o ambiente de um
novo espaço, mas queria aproveitar o aconchego do hotel – as filmagens iam-se
estender pela madrugada gelada e eu precisava de acumular calor. Verifiquei, à
porta, que era possível fazerem take-away, e entrei.
Faço uma
pausa na sessão. Escrever dá-me fome e, agora que os meus músculos estão
maiores, consumo mais. Levanto-me, ligo um podcast
e vou até à cozinha. Abro o congelador e como uma barrita crocante. Passo pela
minha avó e pergunto-lhe se quer que leve o lixo lá para fora. Ela diz que sim
e eu coloco uma pastilha na boca. Não me dou ao trabalho de despir o roupão e
limito-me a trocar as pantufas cor-de-rosa por umas sapatilhas de corrida. A
tarde ainda vai a meio, mas está um breu frio. As pessoas estão abrigadas nos
casulos e o ar já sabe um pouco a natal. Desfaço-me dos resíduos domésticos e
regresso à entrada do prédio, que deixara aberta. Subo as escadas e vou
pensando em sinónimos para palavras repetidas e na melhor forma de organizar
este texto. Entro em casa e volto a apropriar-me do desconforto das chinelas de
tamanho 37. Toda gente sabe que pantufa não é calçado que se compre para si
mesmo e, enquanto não me oferecerem umas, abuso destas. E elas, que me
desprotegem o calcanhar, abusam de mim.
O restaurante estava vazio à exceção dos
dois senhores atrás do balcão. Estavam sentados na pia e conversavam numa
língua estrangeira. Levantaram-se mal me viram e aprontaram-se, se por aborrecimento
ou satisfação, para me atender. Notei que tinham alguma dificuldade com o
português e perguntei-lhes se preferiam que falasse em inglês. A ideia
agradou-os e assim o meu pedido também pôde ser mais específico – “Coloque só
mais um pouquinho que hoje estou com bastante fome. Ah, e pode por essa cenoura
toda que eu gosto muito”.
Enquanto esperava que a carne de kebab rodasse no espeto, decidi começar
a tagarelar. Eu tinha passado o dia calado e sozinho e queria falar com alguém.
Eles pareceram-me seres sociáveis e o meu palpite correspondeu. Manu e Kaushal,
os dois indianos. Falam, se percebi bem, 22 idiomas, e são irmãos – mas não
irmãos de verdade. Conheceram-se em Portugal e vivem juntos. Um deles está cá
há 3 anos e o outro há 1. Saíram da India e agora são cozinheiros. O Manu usa
um lenço no cabelo e tem uma barba escura e carregada. Era engenheiro mecânico
e admitiu ter saudades do ofício. O Kaushal tinha um corte de cabelo mais
ocidental e vestia fato de treino. Estão no princípio dos 30 anos e apreciam
muito a nossa gastronomia. Têm ambos saudades de casa, mas não sabem quando
voltarão a ver a família. No final fizemos uma vénia de respeito e dou por mim
ter saudades deles.
A extra carne soube-me particularmente bem
por ter sido preparada por quem, minutos antes, me soube ser especial. Quando
acabei a refeição juntei o lixo e fui levá-lo à receção. Descubro nestas
pequenas ações uma significância que me dá estabilidade. Recuso o serviço de
quarto porque percebo a importância de certos hábitos. São rotinas que em casa
me dão trabalho fazer, mas que fora me fazem recordar casa.
Acabo a escrita porque agora estou com
sede. Estico as costas e os braços e olho novamente para o ecrã luminoso. Terei
que rever isto que escrevi, mas preciso de uma outra pausa. Arrasto a cadeira
para trás e levanto-me. Quase tropeço e tenho que inventar um passo de dança
para me desviar da mala deixada por preparar no chão. Amanhã vou-me por a pé às
4h porque tenho que apanhar o expresso para Lisboa.
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