Sete Colinas de crocante

Último dia na cidade que quero tanto tornar casa. Por esta altura da semana já tinha fechado com sucesso uma reunião e feito um pequeno trabalho que me pagou a viagem. Para cumprir tudo a que me propus, faltava apenas encontrar-me. Naquele momento, contudo, só me apetecia comer. Ou trincar, vá. Na vida fuma-se pelo vício da boca e come-se pela vontade de mordiscar. E hoje eu desesperava por algo crocante. 
De mapa em riste para não me perder, esforcei os meus pulmões pelas sete colinas de Lisboa. Fui dar com um minimercado e, depois de explorar produtos de marcas que desconhecia, atraíram-me uns cereais de soja cuja tabela nutricional e textura me encheram as medidas.
Depois subi os quatro pisos do prédio velho e entrei no apartamento que tão bem me acolheu por algumas noites. Deitei-me na cama, puxei de um recipiente de plástico e despejei os cereais. Não era o melhor sabor do mundo, mas valiam pela textura. Com poucas dedadas me satisfiz e fui-me sentar à mesa para conversar com quem tão bem me recebeu. A querida Ana, que diz que odeia ter olhos azuis porque só a elogiam com isso; a amiga Sara, a quem agora devo uma melancia; e a enérgica Sofia, bem-nascida em Famalicoum.
Enquanto contavam as peripécias do dia de trabalho como enfermeiras, dei por mim aperceber-me da incomum sensação do meu fluxo intestinal. A minha barriga roncava ferozmente e decidi levantar-me para lhes apresentar a o que comprei. Pousei os cereais, fiz-lhes o devido pitch e depois li a embalagem do produto: “Conselhos de preparação: Colocar de molho cerca de 30min. Escorrer bem e cozinhar como se fosse carne, incorporando em pratos como jardineira, estufados ou com legumes”. Cozinha? Mas como assim cozinhar? Isto não é de comer com leite? Não era. Tinha acabado de comprar 400g de soja crua em nacos que devorara como se fossem chocapitos do Lidl.
Almoçámos o resto da massa à bolonhesa e aproveitámos o serão com calma. Quando consultei o relógio, percebi que o horário começava a apertar e despedi-me sem saber quando voltaria a vê-las. Como o encontro com o fotógrafo se tinha atrasado, tivemos que fazer a sessão com alguma urgência. Fotografámos em lojas de tatuagens, cafés e cozinhas de restaurantes e acabámos por terminar bem mais cedo que o esperado.
Ainda fui a tempo de comprar meio frango, amendoins e uma barra de proteína para o caminho. Como temia que o banquete me fosse barrado à entrada da camioneta, chamei um sem-abrigo para me desfazer dos amendoins; escondi a barra no bolso de trás das calças e embrulhei o frango à camisa do dia anterior. Passei a inspeção e entrei. Esperava-me uma longa viagem até ao norte.
Relaxei quando o expresso finalmente arrancou. Os músculos, ossos e tendões que tanto se esforçaram podiam agora descansar. Devorei o frango com uma colher de sobremesa e deixei-me escorregar no banco.
Tinham-se passado 10 minutos quando a camioneta fez uma travagem brusca. Ergui o sobrolho e espreitei pela janela. Estávamos no quilómetro 10 da A1 e à nossa frente prolongava-se um congestionamento alentejano. Isto ao ponto das pessoas começaram a sair dos carros e a esticar as pernas na estrada. Uma passageira informou-nos que a Brisa previa que a situação só ia acalmar às 23h30. Eram 19h10. Perguntei-lhe se era às 23h30 de Espanha ou Portugal e ela riu-se. Eu ia chorando. Mas às 23h, depois de conversas casuais do lado de fora do autocarro, o trânsito escoou e arrancámos. Rendi-me a uma vigília pausada e adormeci.
    
Chegámos ao Porto quatro horas depois. A camioneta estacionou no Campo 24 de Agosto e saíram alguns passageiros. Comunicou-nos o Sr. Rui, o motorista, que tínhamos direito a uma pausa de cinco minutos e saí para encontrar um canto confortável onde pudesse usufruir do meu privilégio de homem; se há coisa a que me recuso é ter que pagar para mijar numa casa de banho pública.
Regressei à camioneta orgulhoso do meu ativismo e encaminhei-me até ao lugar. Mas depois parei. Contemplei com ligeira estranheza as subtis alterações do espaço e tentei em vão dar-lhe lógica. É que a costura destes assentos é vermelha, as luzes estão em posições diferentes e eu não reconheço nenhum dos passageiros. Aqui há gato. 
Saio a correr da camioneta e vou ter com um motorista que pica os bilhetes
“Este é o autocarro que vai para Braga?”
“Este é o autocarro que vem de Braga, amigo.” 
“Mas então este não veio de Sete-Rios?” 
Ele, seco: “Não, este é o que vai para Sete-Rios.” 
Ó. Merda.
Olho à volta e não vejo mais camionetas.
“Então, mas onde é que está o que vai para Braga?!”
“Acabou de sair.”
“E saiu sem mim?!”
E ele, despreocupado: “Pois, não sei o que lhe dizer.” 
Volto a olhar à volta para ter a certeza que não existe mesmo nenhum outro autocarro. O parque está vazio e aumenta a ansiedade na minha voz: “Não pode ligar para o motorista e dizer para voltar para trás?”
Ele encolhe os ombros: ”Eu tenho lá o número do outro motorista.”
“Mas então o que é que eu faço?”
“Sei lá, vá ali à bilheteira.”
A bilheteira! 
Vou a correr e entro e debruço-me no balcão. 
“Senhora, a camioneta que faz Lisboa-Braga acabou de sair sem mim”. 
Ela ergue os olhos com toda a calma do mundo, no compasso de quem está a trabalhar há demasiadas horas, e não responde. 
E eu: “Será que podia ligar ao motorista?”
Ela pega num telemóvel de teclas e ilumina o ecrã unicolor. Eu vou alternando o olhar entre a nuca vermelha e a ponta da unha que esmiúça o botão dos contactos. Mas quantos contactos é que esta mulher tem no telemóvel?! Ela finalmente leva o telemóvel ao ouvido e espera. E eu espero. E ela espera. E eu espero. E a camioneta para Braga cada vez mais longe. 
Ela abana a cabeça e pousa o telemóvel: “Pois, o telemóvel diz que está desligado”. 
Saio a correr da bilheteira e vou ter com o outro motorista: “A senhora da bilheteira diz que o motorista tem o telemóvel desligado, há alguma coisa que eu possa fazer?”
“Pois não sei amigo, eu vou para Lisboa”.
O meu ‘merda’ dá lugar a um ‘foda-se’. Volto a correr até à bilheteira. 
“Minha senhora, será que me podia dar o número de telemóvel do motorista para eu ir tentando ligar?”
“Ah, nós aqui não podemos fazer isso… Mas fique com o telefone da bilheteira de Braga e ligue-lhes a explicar”. 
Ela cita-me o número e eu ligo. O telefone também está desligado. Olho à volta e procuro soluções. O meu instinto explora o espaço em busca de algo a que se agarrar. Os poros junto à raiz dos meus cabelos abrem-se e começo a suar. 
Ela encolhe os ombros: “Espere até amanhã e depois ligue-lhes”. 
Aí quase explodi.
“Minha senhora”, agora estou desesperado, “eu vivo em Braga! A minha mala de viagem está na camioneta, a minha mochila está na camioneta, as minhas chaves de casa estão na camioneta, a minha carteira está na camioneta!”. 
Os restos do meu frango estão na camioneta!
Ela compreende o meu desespero e eu insisto: “Pode tentar ligar-lhes outra vez?”
Ela pega no telemóvel antigo e leva-o ao ouvido. Alguém responde do outro lado da linha. É o motorista! Ela explica-lhe a situação e eu espero por uma resposta. 
Ela abana a cabeça: “Pois, mas ele diz que não pode voltar atrás porque já atrasou demasiado com o trânsito da A1”
  Eu sei que atrasou com o trânsito da A1, eu estava lá!. 
Ela vinca o lábio com compaixão, mas eu embirro: “Então mas se ele foi embora sem mim, o que é que é suposto eu fazer!?”. 
Ela espera e ouve o motorista justificar-se.
“Vai algum autocarro agora para Braga?”, continuo. 
“Não, agora só amanhã”.
“Mas então o que é que eu faço?!”.
     E aí surge uma voz por cima do meu ombro. E ai que voz. Ouço-a vindo-a do além e manifesta-se num timbre calmo, sereno, reconfortante, tímido, perfeito. “Eu posso ajudar-te…” , diz.
Viro-me. Ao meu lado está uma rapariga de rabo-de-cavalo, saia e casaco de ganga. 
“Eu também perdi esse autocarro e então a minha mãe vem-me buscar e vamos para Braga…”
Eu olho para ela e tento construir o desenho da cara que se esconde por trás da máscara de COVID. 
“Estás a falar a sério?”
E ela, serena, tão serena: “Sim, ela deve estar mesmo a chegar…” 

PS – notem que as falas desta, minha para sempre, garota estão pontuadas com reticências para demonstrar a leveza com que os meus ouvidos captavam o seu tom de voz.

Eu olho para a senhora da bilheteira, que parece gostar deste desfecho. 
“Será que podia pedir ao Sr. motorista para esperar por mim quando chegar a Braga? Eu chego logo uns minutos a seguir a ele”.
Ela repete as minhas palavras para o telemóvel e eu olho para a miúda. “Estás mesmo a falar a sério?”, pergunto incrédulo, “É que eu até já estou a suar com isto”. 
Ela sorri, maternal: “Sim, estou mesmo. É que eu estava aqui este tempo todo a assistir à vossa conversa e quando soube que a minha mãe vinha lembrei-me logo de te dizer…”.
Como assim ela esteve aqui este tempo e o meu cérebro decidiu ignorá-la como se fosse a ponta do nariz ou o cheiro de um perfume a que nos habituamos? A ela, a minha ninfa do campo 24 de Agosto. 
A senhora da bilheteira confirma-me que o motorista vai esperar por mim quando chegar. E eu expiro. Sorrio e fico mais leve. E olho para ela, a rapariga ao meu lado – a Lucinda. Ai, Lucinda. Só não te beijo porque não seria o suficiente. 
Entrei no carro da mãe e sentei-me atrás no lugar do meio. Forcei-me por ser bom hóspede, mas tinha uma vontade genuína de conhecer estas mulheres que hoje me salvaram. 
Pelos vistos a Lucinda estuda piano – o meu instrumento de eleição – e ensina yoga – coisa que admiro. A Lucinda foi vegetariana durante dois anos e agora é vegana. A mãe da Lucinda, vim a descobrir, conhece a minha ex-namorada e foi professora dela,
Sem documentos e nada mais que a roupa de verão a proteger-me da madrugada fria, sigo à boleia com duas estranhas cuja bondade desprovida de interesse terá para sempre a minha mais sincera gratidão. 
Obrigado, Lucinda. Obrigado, mãe da Lucinda.

Deixaram-me na central de Braga e fui a correr em direção à camioneta. 
“Ó, senhor Rui...”, disse. Mas por esta altura já não lhe guardava rancor. Na verdade quase o ia abraçando. Também quase que levava um beijo.
Encontrei minha mochila e coloquei-a ao ombro. Escondi os ossos do frango debaixo do braço e fui buscar a mala grande, tristemente repulsada no porta-bagagens. 
Por esta altura já só queria chegar a casa. Não à da minha avó, onde vivo há uns anos, mas à dos meus pais. A minha alma pedia o conforto do espaço onde todos os anos festejo o Natal. Não me imagino, hoje, deitar em nenhum outro sítio que não a minha cama no quarto partilhado com o meu irmão.
Então apresso-me. Entro de rompante no apartamento da minha avó e pouso as tralhas à porta. Vou ao quarto colecionar alguma roupa suja e estico a mão para a cesta onde guardo as chaves do carro. Mas a cesta as chaves não estou lá. Procuro pela segunda chave, mas também não a encontro. Vasculho na cómoda, nas gavetas da sala, do quarto, do escritório e da cozinha. Vasculho, até, na gaveta do pão. Mas nada.
Estendo a busca ao quarto onde a minha avó dorme e entro sorrateiramente. Abro com cuidado uma das gavetas e encontro lá as duas chaves. Foi castigo, eu sei que foi castigo! A matreira escondeu-me as chaves por eu me ter recusado a pagar o seguro. Olhei-a no escuro, enquanto dormia, e adorei-a.
Tudo fica bem quando acaba bem. De chave na mão e a casota às costas, desço as escadas do prédio e procuro o carro no exterior. Coloco os meus pertences na mala e sento-me ao volante. Suspiro de alívio Espera-me uma viagem de 15km até à casa dos meus pais e estou grato por este desfecho. Estou em casa, estou aqui e, além disso, adoro conduzir.
Pauso para sentir o conforto do assento nas costas e a textura do volante de couro na palma da mão. Coloco a chave na ignição e rodo-a. O carro emite um som nada glorioso. Volto a rodar. As luzes do velocímetro ligam e voltam a apagar. 
A bateria está gasta. 
O carro não pega. 
Tento uma terceira e quarta e quinta vez e desisto. E depois de parar para pensar, começo-me a rir e solto uma gargalhada desproporcional. Saio do carro e fico de pé na rua. Olho para o prédio da minha avó ao longe, mas não me consigo render à ideia de que ali dormirei.
Volto a entrar no carro e pego no telemóvel. É de madrugada, mas o meu pai aparece disponível nas redes sociais. Então ligo-lhe. Ele atende e percebo que o acordara. Na verdade o meu pai não estava disponível nas redes sociais e dormia há horas. Eu contei-lhe a aventura e ele, solidário e ensonado, pergunta-me num tom que também merece reticências: “Queres que te vá buscar?...”. 
E eu saboreio o momento: “Vens?...”
E o meu pai veio. Ele veio. Bem vestido, de camisa azul arranjada, sapatos aprumados e cinto escuro. Tinha um sorriso radiante e abracei-o quando o vi. Percebi, pela nossa falta de jeito, que não nos abraçamos há vários anos e já não sabíamos como o fazer. 
Mas nunca um abraço sem jeito soube tão bem.
Cheguei a casa às três da manhã, sete horas depois de sair de Lisboa. Já há muito se foi o frango no estômago e desespero por uma devida ceia. Vou até à cozinha e abro o armário. Numa caixa brilhante, que levita no ar acompanhada do canto dos anjos, estão os meus cereais. Hoje queria tanto algo crocante. E tive-o.

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