Pavel

Caminho apressado e de mochila às costas sem saber ainda onde vou dormir esta noite. Estou absurdamente atrasado e arrasto a mala de rodinhas pelos paralelos da ruela. Ao telemóvel tenho o Sr. Pavel – um moldavo que vai comprar o meu Rover – e outras três chamadas em simultâneo: o Chiquinho, um amigo que tenta arranjar-me um lugar para pernoitar; a cabeleireira, que interrompeu a folga para me atender e que eu tenho a lata de deixar à espera; e o meu pai, que discute por eu não me ter prevenido com o comando do carro que deixou de funcionar.
Atenção que eu não sou de atrasos e faço tudo a tempo e horas – isto sendo que “a tempo e horas” significa, sempre, mais cedo que o suposto. Mas o raio do comando usurpou-me a agenda. O alarme não para de ecoar pelo parque de estacionamento subterrâneo e eu pressiono, à toa, as teclas. Já mais que exasperado, subo a rampa rolante a correr e vou comprar uma pilha. Uns absurdos 7 euros por uma única pilha-botão? Regateio ele lança-me uma contra proposta. Um desconto. “Posso fazer-lhe 691, amigo”. Está bem amigo, grato.
Corro de volta até ao carro, mas o comando continua a não corresponder. Subo novamente a rampa a correr e entro na loja para fazer a devolução do artigo, mas “Não fazemos devoluções”. Não adiantou eu insistir que tinha sido ele a abrir a embalagem e a colocar a pilha, nem resultou o meu olhar persistente. Tive que pedir ajuda ao meu irmão e a situação lá se resolveu.
Além disso, hoje o Sr. Pavel decidiu começar a não compreender alguns termos burocráticos de transição de proprietário. Para mantermos a conversa, tem que chamar o Nuno, um amigo das obras, para falar comigo ao telemóvel e traduzir o que eu digo.
Já me disseram que tenho que ir à bruxa; que são demasiadas coisas a acontecer-me ao mesmo tempo. Eu o que sei é que não tenho arcaboiço para andar a transcrever todas as peripécias que me acontecem.

 

Já mais tarde e com um sítio para dormir, o Sr. Pavel esclarecido, o comando do carro a funcionar e o cabelo cortado, ouso-me a chamar um Uber. Primeiro desencontramo-nos, mas lá dou com ele num Megane moderno. A matrícula confere, guardo a bagagem na mala e entro.
Conduz um senhor brasileiro já perto da reforma – o Carlos. Tem pinta de artista: uma considerável barba branca, um casaco pesado, boina parisiense e óculos de escritor. Está na cidade há 10 anos e acredito que até podia ser artista, não fosse tão queixoso. O trânsito é mau, a nova disposição das ruas é má, o tempo de outono é mau, a polícia é má, o preço das casas está cada vez pior. “Senhor Carlos, mas então porque é que decidiu vir para cá viver?”, “Ãh?”, “Porque é que escolheu vir viver para aqui?”, “Então, porque é uma boa cidade”. Isso resolve tudo.
No exterior chove. Ele deixa-me em segunda fila e eu saio. Apresso-me até ao porta-bagagens, coloco a mão na pega debaixo do logótipo e o Sr. Carlos decide arrancar. Estupidificado, corro atrás do carro. Alcanço-o, bato com o punho na chapa e ele para de repente. Espeto-me contra a traseira do carro e abro a mala. “Disculpi, cara! Valeu, hein!”. “Tranquilo… Valeu”, hein.
Do Uber vou para uma paragem de autocarro. E eu nunca tinha andado de autocarro aqui, só de metro. Encontro um senhor de idade e “Senhor, é aqui que passa o 735?”, “Não, o 735 é na do outro lado”. Olho para o ecrã do telemóvel. A aplicação diz-me que o 735 passa nesta. Confio no senhor ou na aplicação? “Tem a certeza? É que o mapa diz-me que o 735 passa nesta.”, “Estou-te a dizer que o 735 passa na outra de lá!”. Volto a olhar para o telemóvel. “Está bom, obrigado”. Turrão, pouso a mala no chão e espero aqui mesmo.
Já não chove e o céu abriu bastante, quase como se tivesse mudado de cidade. Entretanto chega um autocarro e a porta abre. “Boa tarde, é nesta que passa o 735?” e o motorista aponta para o outro lado da rua “O 735 é naquela ali”. Pego nos meus pertences e ouço o velho reclamar um “Porra!”, daqueles “porras” com muitos R. “Porrrrrrra, que tu és teimoso”. Faço-me de culpado e atravesso a estrada.
Chega o 735 e entro. Tenho pela frente 19 paragens, um transbordo, e outras 17. Não sei se o sítio para onde vou é longe ou se quem está longe sou eu. Mas porrrra, 36 paragens com uma substituição pelo meio é ração. Já para não falar no preço do bilhete: tenho que comprar dois e fazer exatamente o mesmo percurso no regresso. No fundo estou a pagar um táxi.
Deixo-me estar de pé ao lado do motorista e vou fazendo conversa. Ele não parece ter qualquer interesse em vender-me o bilhete e eu definitivamente não tenho qualquer interesse em comprá-lo. Ao lado está o pica, que também vai falando. São oito horas diárias e conduzir aquele gigantesco chouriço enlatado em amarelo.
Vou alternando o olhar entre o telemóvel e a janela para verificar estou a passar nas paragens corretas e o autocarro vai enchendo. O Moovit foi das melhores descobertas dos últimos dias. Que Pandora. Melhor mesmo só o seu casamento com o Google Maps. É como bolacha maria com queijo. Há uns tempos li que estamos em 2021 e temos mais poder no telemóvel do que nações inteiras tinham há 40 anos. E é verdade. Nada melhor que um contador pessoal de paragens.

 

Dias depois deixam-me na avenida e dirijo-me até uma clínica de análises. Uma fase mais árdua presentou-me com uma espécie de anemia e agora ando a acompanhar o processo de cura. Sou chamado pelo homem, dispo o casaco e sento-me no banco. “Está em jejum?”, “Sim, só comi uma chiclete”, “À partida não há problema”.
Percebo que nunca tinha sido tratado por um enfermeiro e não sei se me agrada a ideia. Gosto sempre mais da sensibilidade de uma mulher e puxa-me mais para fazer conversa. Mas é o que é. Espetar a agulha e sair. Simples e limpo. Ou assim deveria ter sido.
Ele coloca-me a amarra no braço e esperamos pela vascularidade que não quer aparecer. Está frio e tenho o braço arrepiado, está tudo escondido. Ele pede-me que feche o punho, mas pouco mais espera. Solta a amarra e salta para o meu outro braço, o direito. Coloca a amarra, eu fecho o punho e ele apalpa-me o braço como se fosse plasticina. Eu vou estranhando os seus movimentos. Os gestos são quase infantis, talvez amadores. Então ergo os olhos e fixo com atenção. É demasiado novo. Mas tem alguns cabelos brancos, por isso deve ser experiente. Ou então não é nada experiente e queimou-se todo a estudar durante tantos anos.
Vejo a veia aparecer e ele, todo contente, apalpa-a com a pontinha do dedo. Pega na agulha e espeta-a. Gosto sempre de ver este procedimento. É como uma espécie de desafio. Aguenta-te, Filipe, é só o que é. E então vejo-o espetar a agulha no meu braço… precisamente ao lado da veia… no músculo. E depois fica parado, à espera. Olha para mim e faz um sorriso satisfeito. Eu volto a olhar para o braço. Meu… isso não é a minha veia. Ele ajeita os óculos e aproxima-se para ver o que se passa. O que se passa é que me furaste no sítio errado! Depois toca com a pontinha do dedo como se fosse estranho não estar a sair sangue. “Quando começar a doer, avisa”. Aviso, sim senhor. E ele continua à espera. Depois começa a chafurdar-me o braço. Ajeita a posição da agulha várias vezes e vai tocando, mas o sangue não sai. E eu juro que tenho sangue.
Ele volta a profanar-me o local da coleta e finalmente encontra veia, que estava à frente do nariz o tempo todo. “Ah, boa”, diz. Eu por esta altura já sinto alguma dor e vou abrindo e fechando a outra mão para me abstrair. Ele vê o meu gesto e, aflito, chama alguém. Uma enfermeira. Ela apressa-se a ativar o encosto para os pés e pede-me que encoste a cabeça para trás. Eu, tranquilo, explico-lhe que estou bem. Este enfermeiro é que é anormal.
Ele pede-me 500 desculpas, mas não lhe respondo. Pressiono o meu belo braço, por esta altura totalmente violado, e saio.
Depois disso dá-me fome e uma sede tremenda. “Sede tremenda”, bem-vindos a 1970. Acordara de madrugada para praticar exercício físico e ainda estou em jejum. Mas não há supermercados, não há cafés, e eu não tenho dinheiro trocado. Então entro no que parece ser uma loja de souvenirs e pergunto à moça atrás do balcão se me pode dar um copo de água. Ela diz que não há torneira no estabelecimento, mas que vende garrafas de água Luso – daquelas demasiado caras porque, afinal, são souvenir.
Eu explico que não tenho trocos e ela explica que não têm multibanco. Eu devo ter parecido desolado e ela sai de trás do balcão, vai até à arca das garrafas, tira a Luso e oferece-ma. “Sabes que mais? Toma”. “Oh, a sério?”, “Sim, não se nega água a uma pessoa”, “Oh, obrigado!!” e quase faço uma vénia, “Como é que te chamas?”, “Carolina”, “Carolina, eu sou o Filipe, obrigado mesmo”.
Saio da lojita com a minha água fresca e olho para trás algumas vezes para lhe acenar de volta. Quando regressar aqui para apanhar o transporte de volta tenho que me lembrar de lhe comprar um chocolatinho e ir lá oferecer-lhe. Claro que podia simplesmente dar-lhe as moedas, mas acho que brindá-la com um souvenir é mais elegante. Embora ela possa ser alérgica a chocolate… mas fica a intenção. E ficar ficou, porque não o escrevi e esqueci-me.

Finalmente encontro-me em pessoa com o Pavel da Moldávia. Um gordo musculado de ombros salientes e olhos azuis. Alto e simpático; tão simpático. Depois da papelada totalmente tratada, propõe que tomássemos um café numa esplanada. Nunca uma venda online tinha sido, para mim, pretexto de socialização, mas gostei. Foi uma amostra do que é a hospitalidade do leste – “Hospitalidade? Hospedagem?”. Ultimamente ando com falta de vocabulário; tenho que recriar o hábito de ler. Há uns meses deixei Dostoiévski a meio indefinidamente. É um crime, bem sei, e o castigo é uma aparente falta de léxico e o abuso de gírias e estrangeirismos. 
Na esplanada perto de casa, pedi-lhe que dissesse algumas palavras em moldavo. “Olá” é “Salute”. Diz-me ele que o idioma é parecido com o romano, e eu agora concluo que ele talvez queira ter dizido romeno. Dizido, Filipe? Mas percebo que a língua tem bastantes semelhanças com o português oral. Conversámos sobre a filha dele, o filho e a esposa. Contou-me sobre as aventuras da vida de camionista e as 9 horas de uma solitária condução diária com paragens em paragens de serviço. As comidas são em restaurantes ou então cozinha num pequeno fogão a gás que usa e abusa juntamente com o mini frigorífico. Compra sardinhas e carne e faz barbecues sozinho no escuro de um final de dia Europeu.
Perguntei-lhe sobre o regime do país e sobre o Natal. Na República da Moldávia o nascimento de Jesus celebra-se no dia 25 de dezembro e depois no dia 7 de janeiro, mas não me sabe dizer o porquê. “Já era assim antes de eu nascer, é ortodoxo”. Apontei o aniversário dele num papel, que era dali a 24 dias, e faço questão de o parabenizar. Gostei genuinamente do homem.
Quando senti que a conversa se esgotava, olhei para o relógio e inventei um compromisso. Não queria que nos fossemos totalmente despejados, com tudo dito e a necessidade de arquitetar conteúdo oco. Fui-me antes do fim e assim fica a vontade de mais.
            Meses depois de andar a cumprimentar pessoas com os nós dos dedos e o cotovelo, ofereci-lhe a palma da mão virada para cima. Ele apertou-ma, firme. “Foi um gosto, Pavel.” E foi mesmo. “Igualmente, Sr. Luís”. Depois voltei-me e entrei no prédio. Não fiquei a vê-lo entrar o carro que tão bom me foi durante 3 anos.

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