Dilúvio

Levanto-me do lugar à janela e equilibro-me, entre balanços descoordenados, até ao final da camioneta. Estico-me ao comprido nos assentos vazios e sinto as ondulações irregulares envelhecerem-me as costas. Fecho os olhos por momentos e aproveito o lugar vazio enquanto a próxima paragem não traz novos peregrinos.
    Nove horas de sono em três dias oferecem um stress cardíaco ao meu corpo. A mistura entre um estado de alerta e a vontade de adormecer. O choque de sete cafés e outras bebidas energéticas. O abalroamento de dias que, de repente, têm demasiadas horas.
    Gosto deste cansaço e gosto do que ele significa. Abraço-o com saudades e quase o busco. É um sempre propósito. A meditação de olhos exaustos que observam como um juíz de fora. Uma apatheia e aceitação que só o desgaste permite. 
    Horas depois chego à cidade que abriga a minha casa. O céu adensa-se de nuvens demasiado negras e a atmosfera assume-se comprometedora. Ouço os rugidos e vejo as lanças pontiagudas que lançam os deuses. "Se fosse a si apressava o passo, jovem", advertem-me. Mas ignoro. Se por teimosia ou inocência. Se por inexperiência ou indiferença. De manhã esquivei-me da chuva da capital, talvez o Norte também me poupe.
    Depois, o dilúvio. Agora, assim. Sem aviso cai a cortina. Um lençol de água pesado que transforma a paisagem. O chão inunda de repente e as tampas dos esgotos ganham uma vida assustadora. Uma erupção de magma aquático alimentado pelo céu e pela terra. O meu calçado novo derrete-se aos meus pés e a minha roupa afoga-se. A mochila aos ombros coagula e a mala de viagem embolsa dez novos quilos. O torso treme descontroladamente e as pernas dão passos mais largos e fortes. A caixa torácica assume posições de poder e vão-se soltando gritos animalescos que me dão força nas subidas mais íngremes. O vento está cortante e empurra-me na direção contrária. Os carros tresloucados não abrandam e atiram-me jatos de água. Praguejo e insulto-os alto e sem vergonha.
    De onde veio tudo isto? Doem-me os ouvidos e esgotaram-se as 300 calorias que me alimentaram todo o dia. Entorno a totalidade das minhas roupas como se já nada valessem. Dirijo-me encolhido até à banheira e sou estátua arrepiada num canto. Expiro uma espécie de stress pós traumático e escapa-se-me um sorriso timidamente genuíno. Uma gratidão sem público.
    Talvez eu não queira paz. Talvez a vá encontrando no interior dos ciclones. Talvez aprecie demasiado a linha ténue entre o degradante e o fantástico. Talvez aprecie que só em momentos de fragilidade resida a dureza.

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