Foi na rua estreita, nesses dias tornada casa, que nos aproximámos pela primeira vez. Eramos vizinhos e eu adormecia ao som de passadas que se deitavam sempre depois de mim. No dia seguinte eu acordava mais cedo. Por vezes 15 minutos, outras 30, por vezes uma hora. Nessa altura ativava o corpo com uma rotina específica de calistenia e ia para o duche suado. Fazia o meu café solúvel com vagar e dava-lhe um sabor achocolatado. Sentava-me ao sol intenso nos degraus do lado de fora da porta e bebia da chávena a ferver. Os seus passos surgiam vindos do piso de cima, quando a ponta do meu lábio superior já queimava com o líquido quente. 
    Foi no último dia que nos juntámos por fim. Eramos quase da mesma altura, mas a estranheza foi-se dissipando com o convívio diário. E fizeram-me bem esses poucos centímetros que nos separavam. O meu ego esticou-me a espinha e a minha postura era sempre excelente. Tinha que fazer jus ao meu porte, não fosse este parecer vencido. 
    Prezo-lhe a iniciativa de se ter aproximado. A minha falta de ousadia romântica daquele mês nunca me teria tomado o primeiro passo. Ela, ainda que a tremer, fê-lo. Sentia-lhe os joelhos sambar e os espasmos musculares nas minhas mãos. Jantámos tarde e até tarde. A quatro. Não me lembro do que comemos, mas terá sido a mesma coisa. Podia escrever que foram sardinhas assadas com batata cozida e feijão verde, mas não foi. Isso fora umas noites antes quando, no final da refeição, ela deixou meio gelado derreter sobre as espinhas cuidadosamente colocadas no canto do prato. 
    Entre outras coisas, gosto de observar a relação das pessoas com a comida. Acredito que a opinião religiosa e os hábitos alimentares revelam muito sobre o cerne de alguém. Tal conhecimento é excecionalmente íntimo. E não sei que tipo de controlo terá que ter uma criatura para deixar meio gelado derreter no prato. Eu sou compulsivo no que toca ao comer e a travessa que tenho à frente acabará sempre vazia. Quando assim não é, é porque foi premeditado e esforçado.
    Depois do jantar subi sozinho as escadas até ao meu quarto. Não gosto de ver o meu espaço invadido e agradou-me que isso tivesse ficado subentendido. Prefiro explorar o embaraço de um lugar novo, a dar a conhecer o meu. Gosto de estar onde habitualmente não estou. Escovei os dentes e peguei na roupa de noite que sabia que não ia usar. Levei-a dobrada como um acessório de cabeceira sem utilidade. Não gosto de me cobrir com roupagem quando durmo, mas levei-a por cerimónia.
    Bati duas ou três vezes e esperei mais tempo do que diria ser justificável. Fiquei a olhar para o branco pálido da porta e depois para os pés. Ela abriu. "O que é que estás aqui a fazer?". Estremeci por momentos. O que é que estou aqui a fazer? Mas ela logo baixou a guarda e sorriu. "Estou a brincar. Entra.". Entrei.
    Conversámos encostados ao armário da televisão. Não me consigo recordar de uma única palavra que trocámos. Eu estava em piloto automático e acho que ela também. Os diálogos não acrescentavam grande coisa. Eram mais redundantes e cordiais do que deviam, como que à procura de uma brecha para iniciar o que ali me levou. Como que à espera do momento certo para deixar cair a máscara no chão e escondê-la debaixo da cama. 
    É muito vulnerável a distância que separa dois corpos. Nesse intervalo somos confrontados com a obrigação de nos olharmos. Enfrentamos a nossa vulnerabilidade e aprendemos a aceitar a do outro. Tudo isso se quebra no ato de aproximar. Os olhos fechados e o tato quebram a tensão. O gelo derrete e o mistério desvenda-se. Afinal somos só humanos. Afinal és tão animal como eu. Afinal está tudo bem.
    Como se retoma um beijo que se interrompera três horas antes? E devia ser essa interrupção suspensa? Devia o beijo ser restabelecido? Queria eu repeti-lo? Quereria ela? Antes tínhamos a proteção do espaço exterior. Agora, num quarto, não há como fingir, como fugir. Não há esquivo possível.
    Acordei ainda mais cedo do que o habitual. A cortina estragada da janela do meu lado não poupou o meu sono. O resto da manhã foi em grupo e agimos como se nada tivesse acontecido. Eu tive que partir no início da tarde, ainda antes do almoço. Despedimo-nos com um abraço que, calado e breve, falou com desencanto. Não nos vimos mais.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Uma ode em três partes

Isto não é uma pub

O apagão