E depois?
O que é que tens feito? [Ri. Quão invasiva e desprovida de interesse consegue ser uma só pergunta.] A verdadeira questão é o que não tenho feito. Boa, desembucha. Sei lá. Tudo e nada. Conta lá. É demasiada coisa para contar e não é nada que valha a pena o esforço. Diz uma coisa só. Diga um. Não sei, não me lembro. Sinceramente não me lembro. Não as conto, fosse lá eu contá-las. Estás-me a dizer que não enumeras nem um dos feitos que fizeste. Não chamaria feitos ao que fiz. Não sejas tão literal, também não me refiro a feitos de proporções lusíadas. E o que queres saber? Qualquer coisa. [Penso. Fiz isto aqui, fiz isto ali. Mas não, não há nada que valha a pena contar. Depois viriam mais perguntas e tinha que me pôr a justificar. Ou pior. Teria que estar a receber crédito por coisas já passadas.] Não sei mesmo, esqueço-me completamente. Se calhar não fiz nada. Não podes ser estóico ao ponto de viver assim. Não sou. Nunca ninguém foi. Mas às vezes os outros é que têm que me relembrar que até vim andando. Está bem, desisto. [Mas não desistiu. Nunca desistem. Valoriza-se tudo enquanto é segredo.] E nos últimos dias o que tens feito? Nada, na verdade. Inventar coisas para que não deixe fazer coisas. Que tipo de coisas? Coisas. Rotinas, só. És deprimido. Isso é um diagnóstico, um insulto ou um desafio? Nenhum. Talvez seja, sim. Deprimido ou parasita. Parasita? Parasita. Porquê parasita? Porque a sociedade pós-industrial é completamente inútil. Principalmente a digital. É constituída por uma frivolidade perfeitamente fútil. Temos tudo exageradamente garantido e ao alcance. Este tipo de conforto é incontrolável. Este tipo de existência é estagnação. Existe demasiado tempo para pensar. O tempo consegue ser tão morto que só se preenche e completa com vícios. E é difícil medir a diferença entre o vício bom e o mau, olha que é. Antigamente ninguém estava com disponibilidade para psicoses. [Silêncio. Uma pausa demasiado longa. Insistem com as inquisições, mas rejeitam quando vomitamos o nosso interior num prato e o esticamos na ponta do braço. Mas continuei.] Há dias tive uma experiência extrassensorial. Uma visão de um universo paralelo que não este. Uma premonição? Não, isso não. Espero que não. Talvez só um receio. Sim, definitivamente um receio; sem talvezes. De repente estava sentado no sofá. Não estava esticado nem deitado. Estava sentado, quase com a postura correta. À minha frente tinha a tela grande que projetava um filme que não fixei. Aliás, por esta altura até o tinha em pausa. Então não se ouvia nada. Um quarto sozinho num piso sozinho numa casa sozinha. Costumas queixar-te muito da solidão. Quem diz que me queixei? Queixaste? Sim, queixei, não posso? Tenho saudades de pessoas. De quem? Qualquer uma. Agora valorizo mais a conversa com o barbeiro e com a senhora do pão. Parece-me que o "bom dia" e o "obrigado" são mais autênticos. Que existencialista estás. Talvez esteja. E estavas sozinho porquê? Porque entre estar sozinho e acompanhado, apeteceu-me estar sozinho. Então porque te queixas? Eu não me queixo. Não? Eu martirizo-me. E depois? E depois o quê? A história. Qual história? A que estavas a contar. Isto não é uma história. Com princípio e meio já se pode considerar história. Dois atos são história o suficiente. Então está feito, não vale a pena contar mais. Vale sim, ainda só contaste o primeiro ato. E só o primeiro ato já é história? Depende. Se esse primeiro se dividir em três, sim. Continua. Nada. Foi silêncio, só. Daqueles silêncios sem grande significado. E depois? Não precisas de estar sempre a perguntar "e depois?". Se não disseres isso, eu continuo na mesma e evitamos a pausa. Não posso perguntar "e depois?"? Podes, mas é redundante, não faz sentido. É para mostrar que te acompanho e estou curioso. Eu sei que estás, senão já não estavas aqui. Está bem. [Espero que pergunte "e depois?", mas não o faz.] E depois eu estava sentado, o pescoço ligeiramente tombado para o lado e os olhos desfocados num transe não tão profundo assim. Pensei em mim e no protagonismo que me tenho. E lembrei-me que se tudo isto acabasse hoje, ou amanhã, ou daqui a uma semana, me vou sem nenhum feito lusíado que me guarde. Não passava de um ninguém ou qualquer um. E se estiver destinado a ser para sempre figurante? Um vulto desfocado lá ao fundo. [Ele calou-se. Depois falou.] E se fores? [Que é como quem pergunta "e depois?"]
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