Paisagem boémia
As silhuetas dos corpos intimamente dançantes afiguram-se do lado de cá da janela noturna. Vejo-os moverem-se como ondas que desabam, mas não compreendo a totalidade dos seus movimentos. O meu corpo anestesiado, sentado a um cadeirão no fundo da sala, força-se para se manter acordado enquanto admira o desprendimento de todos.
Estas pessoas desenrolam-se com menos complexos a que me habituei. Não sei se é a sua familiaridade, a geografia ou o meio, mas quero aprender esta estranheza. Sou uma espécie de intruso caído num bando sem nome e rostos esquecidos, cansados e movidos a estimulantes.
Estudo a dinâmica do grupo através de um alter-ego que todos alcança. Examino os desafios vazios a que se propõem e valorizam sacramente. Feitos que nada importam à regência do Universo, mas que são para eles fundamentais. Queimam-se para se sentirem úteis no cuidado das feridas. Incitam sabotagens auto impostas para que possa haver motivo de queixa. Precisam da criação de um estímulo que confirme algum desígnio.
Depois verbalizam a proeza repetidamente e com exibicionismo, como se coragem se limitasse a isso. E há aqueles que são e os que fingem ser. Mas dariam sangue uns pelos outros e isso agrada-me. Consigo gostar deste conjunto. E olho com admiração o que me é mais próximo. Porque esse é de verdade. Tem uma essência que se mistura bem com as outras. Apraz-me que a estrada me traga pessoas assim.
Alguns já se foram embora. Outros voltaram e partiram novamente. Gostava de ter ido com eles, mas estou agora num corredor disfarçado de quarto. São seis da manhã e escrevo com um olho aberto e outro fechado. A junk-music continua alta, ensurdecedora, na sala ao lado. A tendência é a qualidade piorar com a passagem do tempo. A coluna rasca prolonga-se no sofrimento de aguentar tamanhos decibéis. É tudo tão aleatório e eu há muito que fiquei sem copo.
Mas os resistentes ainda dançam. A vivacidade dos químicos e dos propósitos que não compreendo. Ou então é gozo mesmo. É euforia. Eu é que me farto passadas umas horas. Já dancei mais que o corpo e a paciência me permitem. Preservo a utilidade da minha endurance, embora saiba que estraguei a voz para os próximos dias. As olheiras também vão demorar a ficar mais leves.
Depois chega a ruína. Cervejas espalhadas, sumos entreabertos, sofás desalinhados e lixo no chão. Caixas com comida intragável e restos de tabaco. E eu faço parte disto. Há casais que se aventaram a dormir e outros, individuais, cospem as entranhas. Há um morto na cama ao meu lado. Outros houve antes dele. Eu fui o primeiro derrotado, mas não me faz qualquer confusão o título. Sou só um morto vivo a escrever o que vê. Estou com frio, aninhado, e recordo a mulher desconhecida que vi entrar despida num mar de inverno. E isso agrada-me porque podia ser eu. E sou.
Talvez não seria mau levantar-me e dançar. Acho, até, que vou. Depois aterro noutra poltrona de cheiro velho. Olha, é dia lá fora. Em breve a energia repousará com o nevoeiro que cai. A existência de um final torna sempre tudo mágico.
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