Vagabundo teimoso

    Coloco os chinelos de dedo, a mochila às costas e aperto o casaco até acima. Ouço a porta pesada fechar atrás de mim e confio nos meus passos entorpecidos. Cheiro a chuva que ainda não veio e o nevoeiro faz-me eriçar. Protejo-me com a gola e o gorro e não posso deixar de pensar que percorreria o mundo assim. 
    Vejo, de relance, o meu reflexo num vidro de uma imobiliária abandonada. O cartaz de arrendamento é antigo e está gasto pelo clima. A caligrafia é velha e escorrem marcas de terra. 
    É o último dia perto do mar e pouco o vi ainda. 
    Enterro as mãos nos bolsos e esforço por me equilibrar. Caminho guiado por tonturas de sono e cansaço nas coxas. Quase anseio pela hora do jantar, que aproximar-me-à da correta hora para dormir. O ato de fechar os olhos é um prazer cuja garantia me foi, ultimamente, retirada. E a janta tardia ao balcão da tasca, entre silêncios prolongados e conversas de conhecimento comum, apraz-me. 
    Levo um livro roubado sem remorso na bolsa, mas não tenho a certeza se o quero ler agora. A ideia parece-me boa, mas exigente - demasiado valente para quem sou no passeio de hoje. Quero conversar, apenas. Sentar-me com e como um estranho. Não ter passado, nem ter que justificar o futuro. Resumir a minha vida em breves palavras ou a uma profissão indiferenciada. Aqueles que sabem que não tenho nome não exigem nada de mim. 
   A claridade faz-me parar para colocar óculos escuros na cara. Que frio. Que gelo. Mas já me posso dar ao luxo de constipar. O resto do país arde em calor, mas aqui avizinha-se tempestade marítima. Nos últimos dias chove sempre, como se o aguaceiro chorasse comigo os locais que foram minha casa. O final de um ciclo. Torço para que no regresso me receba o sol. Mas, caso não o faça, haverá sempre uma cama: a próxima recetora do desejo do meu corpo. 
    É estranho dizer que cresci, mas é bom senti-lo. E é bom saber que o florescimento não nos muda ao ponto do desconhecimento. Molda apenas no sitio certo. Pequenas pinceladas que fazem de um pequeno, um grande. Sou mais compassado e não me amarguram tanto as pausas entre as palavras, os olhares mais prolongados e os pequenos desentendimentos. Já não me escondo como dantes. 
    A sesta inesperada desta tarde deixou-me vagaroso. A manhã arrancou-me brutalmente da cama e acredito que isso justifica o meu estado solenemente adormecido. Respiro o cheiro a sal e relembro o quão gosto de marisco.
    Tenho dificuldades em desviar-me para o passeio e sigo teimosamente pela ciclovia. O cansaço deixa-me vagabundo caprichoso e sou indiferente aos desvios exagerados que os ciclistas fazem em meu contorno. Protestam silenciosamente e fazem-no com razão. Eu faço o mesmo 
    Carrego tantos nas calças que se me arrastam pelo chão e o meu círculo está tão espalhado. Que bom. Ainda que por vezes pareça o contrário, estou tão acompanhado num mundo sozinho. Reencontro os meus em lugares incomuns e sei-os bem. Tenho saudades de alguns. Agrada-me saber que os irei ver em breve e colecionar outros. 
    Escuto o canhão de uma onda e passa por mim uma gaivota sem sombra. A praia infinita oculta-se atrás do muro das obras. Estes dias sem data sugaram-me e é assombroso quanto o meu vazio tem para dar. 
    Amanhã morro, mas hoje os rostos parecem-me mais bonitos. 

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