Farinha

E se tudo em que eu acredito é falso e a arbitrariedade de um maléfico génio maligno governa o meu mundo?  
    É uma questão que até hesito levantar, não vá o meu toque tremelico materializá-la. Não vá o meu senso-comum intelectual ser redondamente corrompido por uma péssima superstição medieval. Lanço esta ideia primeiro em pensamento e depois no caderno, e até o afasto. Escrevo-a com a folha e a mão longe do meu peito e da minha cabeça, não vá ela criar raízes milenares. Depois ia-me eu e ficava a ideia. Não poderia ser. Indo eu, que vá tudo também. Ou que venha. Exceto essas raízes medonhas. Dispenso esse tipo de feituras fedidas. Que se afoguem à vontade.
    Mentalmente já dei três centenas de séries de três pancadinhas com os nós dos dedos em todo tipo de madeira alguma vez adulterada pelo Homem. Logo de seguida faço as contas e percebo que esse tipo de numeração pode chamar infortúnio e dou só mais três para espantar os espíritos da numerologia. Depois vem-me a incerteza se deveria ter batido com os nós dos dedos ou os nós dos punhos e já não sei se há diferença entre eles. Bem, mais vale fazer tudo de novo só para tirar a teima.
    O meu processo de escrita é engraçado, acaso se possa considerar “engraçado” um sinónimo de traiçoeiro. Ou até de traidor. Lança-me o mote como fisga sacra e pouco mais que isso consigo desenvolver. Suicidam-se-me as conclusões. O final dos textos apresentam ideias que nada têm que ver com o objeto inicial. E eu tento, juro que tento, desenhar linhas que tanto suam para tentar encontrar elos de ligação. Mas são traços rascunhados em lápis gasto cujo carvão voa com o vento.
    É eu que não faço ideia se a indisciplina é minha ou do papel, visto que só acontece no papel, sendo que eu só escrevo em papel. Dado que por “papel” também se pode entender a plataforma virtual. Ou seja, tudo em que se possa escrever. É. Não sei se a indisciplina é minha ou do material. Podia, isso sim, comprar uma máquina de escrever. Mas sei que alguma vez tivesse uma máquina de escrever usava-a para pintar. A subversão existe sempre e não lhe conheço outra realidade.
    Se calhar é para isto que servem os cursos que tão vaidosamente prometem ensinar a escrever. Em realidade ajudam a desenvolver uma particular consciência de subordinação. Uma ordem estrutural que permita criar alguma forma e esqueleto. A aclamada consistência. Uma espinha dorsal que não se espedace nos atropelamentos acidentais das minhas sinapses.
    Pausa.
    Só sei que se a escrita fosse o meu ganha-pão, bem que andava a comer farinha. 

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