Autorretrato do não artista
Consta-se em mim a vontade habitável de desabitar. O bel-prazer de largar tudo e me render ao ofício, sublinhe-se, temporário, de não ter abrigo. Não ter lugar, não ter gente, não ser. Não sei se é uma tentativa de abandonar a civilização ou se de me abandonar a mim mesmo. Mas é algo que bambeia e se posiciona algures entre as duas. A destreza de não ter nem ser. Transcender em imundice. Hoje e ontem e amanhã quero deixar de parte o que apossei e ir conquistar o nada, sem o propósito de o conquistar. Só ir. Calçar ou descalçar e parar apenas para comer. Não intento sequer deter-me em restaurantes ou ter de preencher fichas em pousadas. Aborreço-me com a burocracia.
Talvez daí durma tanto em sofás. Acaba por ser uma atitude casmurra de alguém que quer contrariar a instituição. Qual? A. Acabo, então, não poucas vezes, por pernoitar nessa mobília. Apresto-a como desculpa tão esfarrapada como os trapos em que acordo. É a minha revolta contra as camas. Com um Long Live the Couch sei que venço e me oponho a regulamentos. Quero sujar-me um pouco. Só.
Não pretendo dar a isto grande espaço para pensamento nem planear como o fazer. Quero, isso sim, chegar ao fim do dia e arrepender-me de nada ter planeado. Amaldiçoar a hora em que, num êxtase irracional decidi abandonar tudo e sobreviver apenas da vontade de regressar ao que tinha. Quero sucumbir ao núcleo de accumbens e viver assim para sempre. Mas quero-o de uma forma palpável. Para o já. A recompensa de fazer e estar move-me de motivos.
Ir, ir, ir. Sem temer. De que adianta? No final é tudo teoria.
Ao fim da vida vou ser velho e não vou saber compreendê-lo. Creio que nunca o confessarei com a força que a velhice acarreta. Um “estou velho” vai ser mais uma espécie de confissão cultural do que, propriamente, pessoal. Uma conveniência, portanto. Uma redundância. E talvez nem venha a temer a morte porque nunca a irei sentir. Sou ou não sou imortal à minha maneira? Quando morrer não sei que o fiz. Para mim, se e enquanto me perguntarem, estarei sempre vivo.
Temo, isso sim, a espera. A inação mortal e a ausência de um propósito. Já por isso não a consumo. A espera bem pode esperar por mim. Sentada. Não acredito e desconfio sempre da descrença. O ceticismo não existe e, quem diz que o é, afirma-o com uma sobranceria descarada. Nunca um ateu se disse ateu sem demonstrar uma pitada de vaidade. Olha só para mim. Sou ateu. Está bem que temos com O-Que-Quer-Que-Seja uma relação ocamente virtual, mas ao final do dia olha-se o céu estrelado com um sorriso. E se isso não é acreditar, então a crença não existiu nunca.
Sei que acreditei na reencarnação durante demasiados anos. A reencarnação exata. A budista. Agora acho que a reencarnação, e o nunca morrer, (aqui excluindo-se a imortalidade das realizações e a memória de quem nos ama ou odeia) é mais metafísica. Cientificamente nunca irei desaparecer por completo. As minhas cinzas irão viver no interior de uma flor ou, no pico da idealização, num carvalho oponente e sempiterno; longínquo daqui. É o conhecimento surrado de que nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Consigo encontrar a ciência, descobrir-lhe a logicidade e tê-la em consonância com a minha convicção esotérica
A minha infância e princípio de idade adulta foi sempre refugiada no pecado da ilusão. A restrição que é a realidade soube-me sempre a pouco. O mundo parecia-me vazio. A conceção do eu não me satisfazia. Eu não era eu, nunca me fui. A máscara que concebi e com que brincava era o meu maior flirt. Um bailarico atestado de seriedade. A minha maior honra e lealdade. Fui devoto. Mais tarde descobri que essa ilusão que me acompanhava era a arte. Ludibriava-me para manter o tino e não perder o miolo. Demorei muito a vir a ser eu, se é que o sou já. Ou ainda.
Numa tentação descomplicada de me propor a definir a arte, julgo-a como a inextinguível e ambiciosa tentativa de regressar ao estado original. Vou-me perdendo ao longo da vida. Vamos todos. Protegemo-nos e tapamo-nos com camadas inferiores. Na arte, que me desconstrói, encontro-as e reencontro-me e completo-me. Regresso ao meu estado primário e emancipo o meu primitivo. Por esse motivo tento sempre, através da arte, encontrar a minha humanidade e, fora dela (se é que tal possibilidade existe), aproximar-me do espaço natural. Mas é um percurso absurdo e agreste:
- A representação, como exemplo, é um deslumbramento permanente que casou com uma ansiedade frustrante. Agarro o texto, decoro-o cansativamente, repito-o incontáveis vezes e ele sai mal. Ensaio e ensaio e ensaio e a cada ensaio perco-me mais um pouco. E depois procuro durante horas e dias e já chegou a meses. Mas, assim que consigo, ou assim que completo, passa o sofrimento, passa a dor, passa a agonia. Chegar lá é um processo doloroso e, quase sempre, falhar na arte me dói mais do que falhar na vida. E por vezes chego ao final do dia recheado de iluminação e outras vezes chego ao final do dia e estou magoado. E destruído. Estou feliz, mas a felicidade aleijou-me. E ficam as lesões, e fica a walk of shame até casa, e fica o contraste dos aplausos com o silêncio e a solidão. E fica, essa sim, a ressaca.
- A escrita, por comparação, acaba por ser mais confortável. Mas é confortável apenas quando a verbalizo. Porque quando a faço e examino e perscruto sou profundamente sugado e fico seco. Mas escrever é, sem dúvida, mais cómodo. Pelo menos no seu sentido exato. Tira o sono igualmente, mas não tira a voz nem cansa o corpo. E posso fazê-lo sem medo. Sou só e eu. É mais meditativa e introspetiva e o seu silêncio acaba por ser relaxante.
Em ambas o tempo corre depressa demais e quase consigo abdicar das minhas necessidades biológicas. Não há fome, não há sono. Não há nada. É nessa oscilação que vou mantendo e manifestando a minha metamorfose. Na arte preciso de medir muito bem o que quero dar e o que quero manter para mim.
Agora nada me sabe a pouco. Sinto que vivo muito, mas nunca demais. Não irei nunca definir-me como existencialista porque ao final do dia sei que existe algo mais. E sei, verdadeiramente sei, reconhecer a magia de tudo isto. Mas receio estagnar. Achar que é suficiente. «Life is good. But it can be better». E a magia não me conforma nunca. Uma coisa não implica a outra. E não digo que não vacile, que não me afunde numa espiral descendente e me deixe deprimir com tudo. Deixo. Mas são fases que não definem o meu todo. Aprendo a tirar prazer da minha angústia e a agarrar-me na consciencialização da sua finitude.
No fim, caio num transe profundo.
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