O último Morpheu

Querido Diário,
    Tenho sonhado bastante ultimamente. E atenção que não uso "sonho" como propósito a alcançar, realidade a manifestar ou futuro - que virá - a festejar. Aqui utilizo "sonho" na forma mais íntima, primordial e unidirecional que conhecemos, tu e eu. "Sonho" como expansão do inconsciente, como fenómeno psíquico involuntário. "Sonho" como alucinação ou, dir-se-ia, em jeito de outra definição, desmistificação de desejo reprimido. Sonho.
    E depois, lentamente, como um pano negro que desce, acaba. Dou que estou de volta ao não-luggar; que continuo vivo. E quando acordo, entre sonos, às quatro ou às seis, medito sobre o que deixei para trás e não virá mais. Quase me deixo censurar por não ter identificado, ainda que subtis, sinais de ausência metafísica. Revejo na minha mente, porque apenas aí aconteceu, partes da cena, e reconheço-os. Identifico os excertos que, depois, sei não fazerem sentido, e sublinho-os. Debato-me entre a indecisão de se, numa próxima, quererei iluminar-me e reconhecer o plano em que tudo ocorre, ou se o permito, como se de real se tratasse, para assim acordar alargado em memória-afetiva. 
    É entre dilemas que algo, de rajada, me trespassa. O luto. Deixo-me chorar e entristecer com a ausência de Quem só eu criei. Pessoas e lugares que não mais existem e que deixo desvanecer, permanentemente, em silêncio. Abraço-os e vão-se sem que eu deixe. Sou um mártir.
    Logo me rendo a um segundo sono, nunca esperando reencontrar o primeiro. E não reencontro. Não fiquei nem vou lá mais. Não espero, aliás, ir a lado nenhum. Quero o sossego de um humano descansado. Mas acabo por me ver algures, num outro luggar que não existe, com outras pessoas que passo a amar como às primeiras. Mais uma alienação que deixo que me seduza e resigne. Conformo-me de cabeça tombada para trás.
    É que aqui, onde eu nasci, o que custa sempre é o princípio. Os primeiros vinte segundos de pura coragem e ousadia que dói sempre tomar. Em que o corpo hesita, mas a mente trabalha. Em que o músculo contrai, mas a sinapse multiplica. Em que o chão é cimento, mas a gravidade perde força. Fatias curtas de tempo que resultam, sempre, em prémio ou aprendizagem. A compensação que surge, invariavelmente, de uma mesma causa: o forçar do desembaraço. Mas ali, onde eu vou e não nasci, o forçar não existe, o processo não começa. Já tudo está em ocorrência, já passou o nascimento e ultrapassou, livremente, o constrangimento.
    Esta segunda [ou terceira - porque de duas já é feito o meu quotidiano] vida que nunca existe, mas deixa rasto. Fico grato aqueles de criação espontaneamente arbitrária ou expansão de outrem e deixo-os levar o seu caminho. No final do dia guardo, em gavetas, estes seres que me fizeram companhia. E as gavetas, com o tempo, acabam, também, por evaporar.

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