Minto
Direcionar-me para o papel é sinal de que me afastei da vida e da atuação. O corpo cansa-me e não encontro a força hercúlea e práxica que me tem movido, incessante, nos últimos tempos. Preciso de um sono longo e de um dia sem nada. Ceder-me, por uma só vez, à insignificância. Deixar que a moleza me absorva e me naufrague nela. Seria autor de uma conduta discordante de tudo que mais prezo, mas só desta vez. Permitir-me-ei a pecar-me sem remorsos. Mas hoje não. Hoje nunca. Amanhã.
Forçar uma autossabotagem e ir abaixo soa a prémio. A inconveniência de desempenhar habilmente a função esperada é a sua metamorfose naquilo que é somente o expectável. Não haverá mais tolerância para a derrota e o falhanço. E, podendo o sucesso ser fenómeno do acaso, torna-se o peso e infortúnio do acometedor. Errar, em contrapartida, diminui a pressão e relativiza a importância. Por vezes pondero se o melhor não será mesmo falhar para sempre. Fracassar implica uma nunca estagnação em consequência de permanente atualização. Depois de fazer bem e melhor é possível apenas a regressão e uma queda para o prelúdio. A exigência e ansiedade alimentam-se de triunfos. No primeiro tomba uma maldição tão magoada como no último.
Estar infeliz é quase romântico. Que sufoco poético este de mostrar que se sofre. A dramatização é uma moda imortal imune à profanação do tempo. Sucumbir ao néctar da tragédia é razão de envaidecimento. É artística a infelicidade e um perigo a sua aceitação. O aconselhável que é o não chegar lá. Rebanhos de alcateias para censurar o bem e o mal, o estado e a anarquia, o roubo e a doação, o altruísmo e o egoísmo. Critiquem-se os sinónimos e antónimos e o branco e o preto. Não há mais o cinzento. Olhe-se de canto para a motivação e para a procura do aperfeiçoamento. Repudie-se o aprimoramento.
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