Cinco horas para 21

     A geada matinal afinca-se a pigmentar de branco as ervas verdes que transpiram com o toque do sol. A chávena de metal nas minhas mãos aquece-me os dedos já pouco frios e o vapor dilata-me os poros da cara. Passeio as botas e desvio-as das marcas dos pneus dos tratores na tentativa de, assim, esquecer a presença pontual de figuras humanas que também visitam este espaço. Limito-me até ao desvio por, a partir daí, a natureza se ir degradando, e dou a volta. Parado, encaro o percurso rotineiro que faço sempre que cá venho e não chove. 
    Protejo-me no sol quente e vejo o vento soprar com força o topo dos pinheiros bravos. O estômago vazio desperta-me a visão e as pernas ressacam-se por ter dançado bastante, no dia anterior, aquecido pelo licor que me deturpou e expandiu os sentidos em simultâneo. A dança noturna pré natalícia foi destemidamente executada no centro da avenida. Desmascarados, olhavam-nos olhares de máscaras e ignoramos as suas lanças. Servi-me do escudo da felicidade coletiva. E, em coletivo, eramos três, cada qual no seu mundo, partilhando-os em músicas que nunca deixávamos ir até ao fim com receio que isso significasse a chegada do recolher obrigatório.

    Hoje acordei cedo, muito cedo. O sono habitual viu-se vencido por um êxtase insistente e escusável. A felicidade resume-se a não deixar que se fique muito tempo sem sentir entusiasmo. Ainda muito agasalhado, deixei-me enternecer por um café precoce e tirei o meu tempo. Poucos são os prazeres equivalentes a uma manhã ou tarde em voluntária solidão.
    Agora é de noite e o último dia do ano. Está um escuro que melancolia a lua cheia decisiva. Mas que este escuro não seja significado com uma aceção redundante e redutora sistemicamente habituada pelos contos. Não me restrinjo à fabulação de umas trevas que enegrecem a alma. É um escuro de ausência de luz artificial, nada mais. Um negrume apreciável que surge depois de uma tarde em toalha de rio acompanhado pelo sabor da partilha de um Porto maduro. Estou embebido de vida.
    Quero evitar a enumeração de eufemismos para descrever este ano porque isso implicaria que o tivesse com menosprezo e não tenho. Guardo em mim uma gratidão ingrata que vou timidamente partilhando aqui e ali, como se de um envelope sacro se tratasse e não pudesse ser lido por muitos, correndo-se o risco de não o conseguir selar novamente. Chegaram-me um conjunto de palmas latentes e virtudes que terei em conta como plano preliminar.
    A minha roupa repousa no mesmo chão dos pneus. Os meus braços esticam-se e sussurro ao ouvido do Universo. Assim seja e assim será. Espera-me um banho, roupa de cerimónia e o banal minimalismo de uma peça nova. Um acordo tácito que apenas tenho comigo mesmo. As badaladas serão passadas em família e tanto me dava estar de roupa interior. As ocasiões ocasionam-se.
    A tradição sugere que coma 12 passas. Fá-lo-ei. A tradição aconselha, ademais, que salte da cadeira com notas nas mãos, mas recuso essa herança. Não mais cumprirei tal futilidade. Quero as mãos vazias para as encher com o peso dos sonhos.

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